Categoria: Banda Desenhada

Os sistemas de Francisco Sousa Lobo

The Care of Birds

Na capa de um dos livros mais recentes de Francisco Sousa Lobo, The Care of Birds/O Cuidado dos Pássaros, está o desenho de um homem de perfil. Peter Hickey, o personagem principal, tem os olhos fechados, uma faixa de luto no braço e um pássaro a voar da braguilha das calças com a graciosidade de uma pila — ou uma pomba a voar da cartola de ilusionista. A capa é uma provocação (um eyeball kick abusando da expressão de Allen Ginsberg), mas também uma síntese da camada dramática do livro: Peter é um reformado alcoólico para quem a observação de pássaros é um ritual de aproximação com Deus e de sublimação da sua pedofilia. Um Êxtase de Santa Teresa no negativo.

A “origin story” do personagem é reduzida à primeira página, em que Peter nos conta sobre os passeios de observação de aves que fez na infância e durante os quais foi abusado sexualmente. A observação de aves é assim o eixo a partir do qual se desenvolvem várias dimensões do livro. Do ponto de vista da estrutura da história, é um sistema a partir do qual inferimos aspectos da relação de Peter Hickey com (1) Deus e (2) crianças. Do ponto de vista das suas funções na trama, é multivalente: é a forma que Peter arranja para se aproximar das crianças da paróquia, é uma prova de forças (provar que não é um pedófilo a si mesmo, a Deus, à sociedade?) e é também uma tentativa de corrigir ou reescrever o passado ao iniciar os miúdos na observação de pássaros, como dantes também o iniciaram a si. Para além da lógica pederástica subjacente—invocando o poder prescritivo e normalizador dos rituais de iniciação—, há aqui evidências de um circuito ou compulsão de repetição. Peter é como um fantasma que ensaia eternamente os mesmos movimentos, amplificando a angústia e paranóia em vez de gerar a catarse esperada. A faixa de luto, será por si mesmo? A complexidade e consequências dos termos em jogo impedem o personagem (e talvez os leitores) de poder ou querer chegar a conclusões definitivas.

A história progride através destas indeterminações e da justaposição de termos aparentemente contraditórios, que ora se reforçam mutuamente, ora se anulam, formando a topografia instável do personagem. Como diz a sinopse na contracapa, “Peter é um católico tarado e sem Deus com um síndroma de santo.” Se esta caracterização o humaniza, o prosaísmo da história não permite melodramatismos ou empatias gratuitas. “Peter Hickey está para os pedófilos como os observadores de aves estão para os caçadores”, diz também a sinopse. A inocência aparente do “birdwatching” é o truque de ilusionista de Peter Hickey. O que achar dos passeios que este faz com rapazes pré-pubescentes para observar aves? A partir de que momento é que podemos considerar um comportamento como invasivo ou predatório? Para desenhar as aves, Peter captura-as com armadilhas. As aves mandam-no para o caralho e a ironia talvez escape ao personagem.

The Care of Birds
The Care of Birds, edição Chili Com Carne.
O Desenhador Defunto
The Dying Draughtsman/O Desenhador Defunto, edição Chili Com Carne.

Se quisermos reduzir Sousa Lobo ao Santo Graal da assinatura do artista, podemos falar num programa que é recorrente no seu trabalho e que envolve estruturas de autoridade, doença mental e perversão. Numa obra anterior com contornos autobiográficos, O Desenhador Defunto, o autor estabelece uma série de equivalências entre a autoridade moral da fé católica, a autoridade do trabalho, e as hierarquias de valor do mundo da arte. Francisco Koppens, o personagem principal, arquitecto deprimido e também ele um “católico tarado” que em segredo faz banda desenhada erótica sobre sociedades matriarcais, acha-se aquém de todas essas autoridades. A propósito de uma performance artística, Francisco consulta de enfiada um padre católico, um psicanalista e finalmente um crítico de arte. Os sistemas implodem e não chegamos a ouvir a punchline da anedota. Francisco acaba por ter um episódio psicótico e convence-se que a BD porcalhona que andou a fazer desencadeou uma onda de suicídios em massa, que vai dos amigos próximos até ao Papa. Aqui, a perversão é fazer banda desenhada, esse antro de desvios psicossexuais para gente que nunca ultrapassou as obsessões de infância. A Igreja e o mundo da arte folhearam umas revistas e deslumbraram-se com os fatos em látex dos X-Men. Deus olha lá do cimo, estilo smiley mirone.

No seu site, Sousa Lobo publicou um pequeno ensaio, The Comic God, onde sugere algumas tipologias da representação de Deus em banda desenhada. A julgar pelo uso que faz da figura de Deus no seu próprio trabalho, talvez tenha chegado à conclusão que a literatura existente estava em falta. As pranchas do artista são construídas com desenhos delapidados, perspectivas vertiginosas e espaços claustrofóbicos, em jeito de replicar as estruturas de autoridade que interiorizamos. O Deus de Sousa Lobo é isso. Não é “Deus o extraterrestre”, nem “Deus o ausente”, nem “Deus o amigo imaginário”: é uma projecção, uma estrutura avassaladora que observa do andar de cima e que nivela tudo cá em baixo.

Essas estruturas são revisitadas em I Like Your Art Much, livro de banda desenhada em torno de uma exposição do amigo Hugo Canoilas. A meio de considerações sobre como o desenvolvimento da arte e a prática artística estão assentes sobre a ideia de “crise”, Sousa Lobo recupera a sua crise pessoal exposta n’ O Desenhador Defunto. Citando Canoilas, o autor admite que O Desenhador Defunto é uma autobiografia “pornográfica”, remetendo mais uma vez a prática da banda desenhada para o domínio da perversão, aqui no sentido mais restrito do exibicionismo da vida pessoal. A perversão está no acto de confessar que, nas palavras de Sousa Lobo, é “a própria doença que se propõe a curar”, tanto na igreja como nas páginas de banda desenhada.

Mas não se poderá dizer que, na ausência de legitimação social ou financeira, uma actividade como a banda desenhada é necessariamente uma “perversão”? Afinal, a média tem sempre um desvio. Ainda em I Like Your Art Much, o autor recusa a distinção ao amarfanhar “arte” e “banda desenhada” no espaço da página. Mas n’O Cuidado dos Pássaros, Peter Hickey chega a ser comparado a Henry Darger, romancista e outsider artist cujo trabalho foi apenas descoberto postumamente. Com um pezinho dentro e outro fora, entrar na galeria de arte ou na igreja com uma BD debaixo do braço continua a ser mais que uma provocação. É um acto de rebelião.

O Desenhador Defunto

Links de interesse

Francisco Sousa Lobo
Chili Com Carne

Sugestões #73

A ver mangá

De volta com mais sugestões de boa leitura em BD naturalmente. Atenção ao último título, do nosso Ricardo Drumond. Aproveitem para passar na livraria e conferir as muitas novidades e demais títulos ideais para levar para umas merecidas férias. Também são os últimos dias para ver a excelente exposição de Jorge Coelho e adquirir um original ou livros assinados. Boas leituras!

Marvel para assinatura

All New All Different Avengers Annual #1

Por Mark Waid, G. Willow Wilson, Faith Erin Hicks, Mahmud Asrar e companhia. Nenhum Avenger está seguro! Nenhum Avenger está livre disto. A fan fiction de Kamala Khan, a nova Ms. Marvel, e todos os Avengers metidos em contos alucinantes e romances como só uma super-heroína adolescente pode imaginar. Uma parada de estrelas neste anual muito especial. A não perder!

Daredevil Annual #1

Por Charles Soule, Roger McKenzie e Vanesa R. Del Rey. Consegues ouvir? O Daredevil também! Parece um Echo! O regresso da Echo e de um confronto inevitável com o Daredevil!

DC para assinatura

All Star Batman #1

Por Scott Snyder e John Romita Jr. Esta nova série do Batman reinventa alguns dos maiores vilões do Cavaleiro das Trevas, a começar pelo Two-Face! Batman tem de levar Two-Face para uma localização fora de Gotham, mas o criminoso de duas caras e duas personalidades, tem um truque na manga. Todos os assassinos, caçadores de prémios e cidadãos comuns com algum “podre” escondido, estão no seu encalço com um objectivo, matar o Batman! Algemados juntos na estrada para o inferno, este é o Batman e Two-Face como nunca viram!

Dark Horse

Black Dog of Paul Nash

Por Dave McKean. Esta nova graphic novel do genial Dave McKean é baseada na vida de Paul Nash, um pintor surrealista durante a I Guerra Mundial. Esta obra lida com as memórias reais dum soldado e todas as histórias juntam-se para formar uma comovente peça de como a guerra e situações extremas nos modificam, e como as pessoas lidam com a dor resultante. No caso de Nash em vez pintar cenários realísticos, pintava poderosos e fantásticos cenários estranhos e psicológicos.

Dark Horse para assinatura

Briggs Land #1

Por Brian Wood e Mack Chater. Briggs Land é um território rural selvagem, que contém o maior movimento anti-governamental dos Estados Unidos. Quando a matriarca Grace Biggs toma conta do movimento depois do seu marido ter sido preso, ela inicia uma guerra com a comunidade e a sua família mais próxima, que ameaça trazer todas as forças do governo federal para cima deles.

World of Tanks #1 (de 5)

Por Garth Ennis e Carlos Ezquerra. Uma tripulação inexperiente inglesa comanda um experimental tanque Cromwell na França, enquanto são perseguidos por uma unidade veterana de tanques alemães panzer. Que a batalha comece!

Image para assinatura

Black Monday Murders #1

Por Jonathan Hickman e Tom Coker. Esta nova série é sobre o poder sujo e nojento do dinheiro e tipo de pessoas que podemos comprar com ele. O Black Monday Murders é clássico ocultismo, onde as várias escolas de magia, são na verdade cartéis bancários que controlam toda a sociedade. Um mundo secreto de vampiros oligarcas russos, Papas das trevas, aristocratas americanos encantados e assassinos do FMI trabalham em conjunto para nos manter a todos no seu lugar.

Kill or Be Killed #1

Por Ed Brubaker, Sean Phillips e Elizabeth Breitweiser. Esta é a história distorcida dum jovem que é forçado a matar criminosos e como ele luta para manter o seu segredo, enquanto este vai destruindo a sua vida, a dos seus amigos e familiares.

Seven Seas Entertainment

Lord Marskman and Vanadis Vol. 01

Por Tsukasa Kawaguchi e Nobuhiko Yanai. O reino de Zhcted é governado por sete mulheres conhecidas como Vanadis, Um grupo de guerreiras que possuem armas poderosas e domínio sobre os setes territórios. Aproveitando da instabilidade civil das nações vizinhas, Zhcted entra em guerra com o reino de Brune. Na batalha que dizima o exército de Brune, o jovem e corajoso nobre de Brune Tigrevurmund Vorn enfrenta a bela Eleonara Vitara, uma das Vanadis, Impressionada pela sua habilidade como arqueiro, Elen permite que Tigre viva, em troca da sua servidão. Mas a guerra está longe de terminar e estende-se mais longe do que podiam imaginar. Tigre e Eleonara estão no meio duma conspiração que ameaça não só os seus reinos, como todo o mundo.

Heavy Metal para assinatura

Atoll #1 (de 5)

Por Tim Daniel e Ricardo Drumond. Quando o saco é tirado da sua cabeça, a atleta olímpica Story Helms encontra-se sentada numa plataforma metálica sobre uma arena, algures na costa noroeste da Austrália. Bem-vindos ao Atoll, onde os raptados são lançados contra o mais mortífero predador, Majesty, um temível grande tubarão branco. Story é a vítima que se segue.

Hip Hop Family Tree

Argumento e desenho de Ed Piskor. Fantagraphics, 2013-2014.

Hip Hop

Yo Yo Yo, Mais “História de (qualquer coisa) em BD”!

É um trabalho tão “HERCúleo” como a História do Japão esta do Hip Hop porque começou como uma cultura marginal e passou a estar em toda a rádio ou TV. Quem não tem cuidado com a alimentação vai prá aulas de dança Hip Hop no ginásio e as câmaras municipais arranjaram uma fonte de fazer dinheiro com os graffitis (ou street-art que é mais chique) sem mexer uma palha nos problemas urbanos de base. É uma epopeia!

O que Piskor conta é mesmo o início, quando este género de música aparece nos anos 70 e lá vai ele na sua lenta conquista de espaço cultural até 1981 (primeiro volume) e 1983 (segundo volume). Necessário dizer que esta série começou no sítio boingboing.net sendo publicado uma página por um episódio de História, depois passou para papel em formato comic-book (pela Fantagraphics) sendo agora compilado em livros de grande formato, vulgo “álbuns”.

Segundo o autor, o Hip Hop e os “comics-books” de super-heróis partilham características idênticas, o que não concordo porque o Hip Hop é original de uma cultura de rua de populações marginalizadas das “chocolates cities” enquanto os super-heróis tem uma tradição de cultura popular branca para crianças que tinham dinheiro de bolso – algures em Hip Hop Family TreePiskor relata que Lawrence Parker (futuro KRS One) partilhava as mesmas calças com o irmão…

Essas características são dadas numa BD do primeiro volume justificando-se porque Hip Hop Family Tree tem um ar “retro”: as páginas são falso vintage com uma impressão como se fosse feita ainda pelas quatro camadas de cores separadas do offset antigo, alguns casos com desajustes propositados das sobreposições das cores e as vinhetas são colocadas sobre um fundo com textura de papel amarelecido como se fossem de páginas de um “comic-book” com mais de 40 anos. Quando há situações que remetem para o presente, a impressão é brilhante e fluorescente. Admito que a primeira vez que vi alguns destes exemplos aqui descritos pensava que estava perante erros de impressão!

Hip Hop

Hip Hop

Yo! As cenas que as unem: o “comic-book” e o Hip Hop são invenções de Nova Iorque, ambas no início eram marginalizadas (check), ambas passam em ambiente urbanos (seria realmente chato o Homem-Aranha viver na aldeia a lutar o Agricultor Debaixo do Tractor), os super-heróis e rappers podem aparecer em “comics” / discos de outros antes de terem os seus registos a solo, ambos usam alter-egos (Carlton D. Ridenhiour é o Chuck D, mêne!), travam “battles” (excelente!), usam logotipos e ícones, fazem “team-ups” e “crossovers”. É bem divertida estas comparações e tiro o chapéu a Piskor pela “cromice”. Já agora ele esqueceu-se que tal como os rappers do “bling bling”, os super-heróis também tem as suas “bitches”: Louis Lane, Mary Jane, Robin,… Talvez estas parecenças expliquem o fascínio dos rappers em escrever letras com referências a super-heróis, só em Portugal lembro-me dos MatoZoo, Nerve, Stray… ou que Chuck D queria ser um cartoonista desportivo.

Esta série é bastante detalhada nos factos que vão construir o mito do Hip Hop com “aquela” vantagem que a BD tem sobre um livro só de texto que é podermos visualizar todo fluxo da história a desenrolar-se por imagens quando folheamos os álbuns. Tal como numa infografia têm-se uma ideia clara de como as coisas evoluíram entre os agentes estéticos do Hip Hop, pouco a pouco, as narrativas de factos que parecem irrisórios vão-se desenvolver em algo importante: o percurso do riquinho blasé do Rick Rubin pelos meandros do Punk e do Hip Hop até que criar a importante editora Def Jam ou a vida de Chuck D que estudou Design antes de fazer parte desse monstro sonoro chamado Public Enemy…

O Hip Hop é música pós-moderna por excelência, ao contrário do Blues, Jazz e Rock que vêm de raízes rurais na transição para a urbanidade com uma narrativa linear e cronológica, o Hip Hop não, parece ter várias origens. Pelo menos é o que eu acho enquanto português longe do sul do Bronx onde nas “blockparties” e respectivas lutas entre “soundsystems” se criou o Hip Hop tal como o conhecemos. Ainda assim e por ter sido uma música marginalizada em tempos tão recentes (a MTV ao principio recusava-se a passar vídeos de “Rap” – o primeiro foi dos… Blondie!) não é fácil perceber a(s) sua(s) História(s) pararela(s) nem fixar as suas figuras mais emblemáticas até porque muitas vezes elas parecem-se com pessoas que podiam estar a apanhar o metro do Rossio ao contrário do Pop/Rock onde houve muitos Reis Camalões, Lagartos e outros drogados. Até os pseudónimos dos músicos distraem mais do que ajudam a memorizar. Enquanto todos sabem saltar dos Beatles prós Sex Pistols prós Nirvana, aposto que são poucas as pessoas capazes de fazer uma linhagem idêntica, tipo Grandmaster Flash / Run-DMC / Dr. Dre… ou que saibam uma letra seminal do Hip Hop como sabem de certeza cantarolar uma qualquer dos Depeche Mode. Descansem se se sentirem ignorantes, no final de cada volume há uma lista fantástica de músicas seminais para por o youtube a bombar som nos próximos dias! Blacklicious!!!

A (possível) falta de centro das origens do Hip Hop é no entanto ignorada por Piskor que não refere as festas reggae e os “disco-mobiles” da Jamaica dos anos 60 que inventaram o “toasting” e o “dubbing” que dariam respectivamante no “MC” (mestre de cerimónias, o gajo do microfone que rapa) e o “DJ” (Disc Jockey, o tipo dos pratos). Falta grave porque o DJ Kool Herc (um dos pais do Hip Hop) era jamaicano que conhecia bem os “dancehalls” e as técnicas dos DJs dessa ilha – já agora, sobre este tema consultem a BD “Reggae on the river” de David Collier na Zero Zero #10 (Fantagraphics; 1996). Também ignora totalmente os Watts Prophets, Last Poets e Gil Scott-Heron, cheios de poesia furiosa da rua nos seus discos de 1970 e 1971!

Se calhar foi porque em 1981, Malcom McLaren (o mesmo que “inventou” o punk e que não quis ficar fora de moda) organizou uma festa onde reuniu os quatro elementos pelos quais se costuma afirmar o que é o Hip Hop: o MC, o DJ, o Breakdance e o Grafitti. Criou um paradigma e um discurso formal onde os mais fanáticos não deixam que caibam outras formas, tão errado tal como achar que BD só pode ser tinta sobre papel. Se Piskor engoliu isso, sendo rigoroso, a parte do graffiti é bem representada com episódios de Keith Haring, Fab 5 Freddy, Lee Quinones, Futura 2000 e Jean-Michel Basquiat mas já o Breakdance é desleixado. Então, Piskor?

Quanto ao estilo de desenho de Piskor, admito que é irritante as suas figurações com poses agressivas, o pessoal mais gordinho é completamente deformado em “blobs”, os “dentes de tubarão” das personagens, os punhos sempre cerrados pra uma luta (?), os olhos de raiva mortal ou de carneiro mal morto. Podia ser um estilo que fizesse ligação entre o super-herói à Marvel com o Hip Hop mas estes mesmos defeitos já os tinha apanhado noutros livros seus como Macedonia (com Harvey Pekar e Heather Roberson, pela Villard; 2007) e Wizzywig (Top Shelf; 2012). Cuspo no prato onde comi?

Hip Hop

Sim infelizmente, afinal estes volumes deram-me um grande gozo de ler!!! Este ano vão aparecer mais dois volumes que vão até 1985, da minha parte já está na lista de encomendas! Biatche

Killing and Dying

Argumento e desenho de Adrian Tomine. Drawn and Quarterly, 2015.

Killing and Dying

Killing and Dying

Killing and Dying

Este livro podia passar na HBO. Porra, porque não adapta o DeLillo este livro, em vez de adaptarem os dele?

Em Playground, ensaio gráfico do argentino Berliac sobre o filme Shadows (1959), de John Cassavetes, o autor discute a translação de uma ideia do cinema para a banda desenhada: tal como Cassavetes se propunha descobrir a película enquanto a filmava, Berliac pretende derivar a narrativa do desenho. Citando Chris Ware — o que fazemos, a partir de certa idade, já não é ver, antes etiquetar, categorizar, e identificar dentro de um todo — apresenta um esquema comparativo entre o “cartooning” e o “dibujo”. Ao primeiro, associa ler, ideias, descrição, decisão, formulação de uma experiência; ao segundo, ver, emoções, expressão, improvisação, a experiência em si.

A relação de analogia que o cinema mantém com a realidade, herdada da fotografia, permite-lhe, em princípio, melhores condições para deixar respirar o “tema” fílmico. Podemos encontrar, na história do cinema, uma linhagem de reacção ao espectáculo, com takes mais longos, planos afastados, actores amadores, câmaras de mão, técnicas que se tornaram tão conotadas com uma impressão de autenticidade que acabaram por fazer o seu caminho até ao baixo-espectáculo, a televisão. Basta pensar no estilo “vérité” de Louie (2010-), de Louis CK, tentativa de encontrar uma relação mais directa com um espectador de hábitos amadurecidos, menos permeável ao slapstick de estúdio e ao riso que está lá a rir por nós desde Honeymooners.

A ideia de Berliac na bd, ao propor uma alternativa ao cartooning, é contestar os mecanismos enquistados de honestidade, dos comix dos anos 60, passando pelo “Indy” dos anos 80, ao comic narcisista e autobiográfico da viragem do milénio. Nesse sentido, que melhor exemplo de que Paying for It (Chester Brown, 2011), uma excelsa peça de defesa num tribunal público, sobre ir às putas? Logo que desenha, a mão mente, e se o psicanalista está desatento, o paciente desfaz-se em petas.

Se cada círculo do inferno literário tem os seus circuitos de autorização e recepção, na banda desenhada podemos falar de Adrian Tomine como um “cartunista emérito”, pensando em Françoise Mouly, directora gráfica da New Yorker, que ao longo da sua carreira na revista sustentou um elevado nível de encomendas gráficas a artistas de bd, fomentando a sua aceitação num meio literário mais vasto. A crítica de A.O Scott a Killing and Dying, no New York Times, refere o campo de habilidades que o cartunista emérito convoca: “linhas claras e precisas, composições naturais, imagens de significado transparente, como celofane”.

Recorde-se a capacidade epigramática de Chris Ware nas capas da revista de Mouly. Só como encenação, cartoon, é possível cruzar o inconciliável. A linha e as cores são afáveis e evocativas da simplicidade da ilustração de outrora, mas a composição, aérea, ao nível do olho adulto, isométrica, é da ordem do controlo: o adulto na casa de bonecas. Qualquer pessoa que leia bd reconhece-se neste pecado original, o de uma literatura de que não se gradua nem se emancipa, mas que ilumina o quarto como uma luz de presença.

Killing and Dying

Em K&D esta chamada retro vem logo na primeira história, A Brief History of the Artform Known as “Hortisculpture”, parábola sobre a ignorância artística do homem comum e o desprezo ainda maior dos que o rodeiam. Contada em sequências de comic strips (normalmente 2×2 vinhetas cada), é subsidiária do género, mas inverte-o. Não há particular recompensa em cada uma das “gags”, aliás, a falta de graça instala progressivamente um sentimento de miséria existencial. O caso é sério porque o protagonista está convencido de que as suas esculturas de jardim são a próxima cena. Numa comic strip tradicional, seria um projecto de domingo mal resolvido; em K&D, é uma crise de meia-idade em que se gastam cinco anos.

Killing and Dying é uma graphic novel, mas na verdade, compila números da série Optic Nerve, pormenor enterrado na ficha técnica. Cada “Criterion Collection” destas é uma performance perante o público adulto que chega tarde à festa, tal como as lindas edições de mestres japoneses que Tomine patrocina na Drawn and Quarterly. Esses gekigá [“dramatic pictures”] dos anos 50 e 60 têm um pouco mais de credo e implicações no dispositivo de “maturidade” do autor. Se em K&D mantém, tal como as dos seus coevos, uma sensibilidade aguda para com o episódio íntimo, a projecção de si nas personagens é parcial. Estas estão sós em obsessões e vícios, aspectos pouco edificantes que só a ficção pode tematizar. Nesta acepção, ler é uma forma de sair do mundo, de estar com pessoas que nunca se conheceu. Não interessam as reviravoltas (notas de ritmo) nem as aprendizagens (lições morais), razão pela qual o fim das histórias coincide com o abandono pelas personagens das suas idiossincrasias. A vulgaridade dos dramas é proporcional à capacidade do autor de os transmitir por inteiro. Há uma redenção estética nisso, e o pequeno aparece como sublime.

O título de K&D reporta à penúltima história, onde as tentativas de uma aspirante a comediante são justapostas ao cepticismo do pai e à doença da mãe. Na ambivalência entre linguagens, lembra Wilson (Daniel Clowes, 2011), a história de um tipo contada em todos os matizes, jogo com a superficialidade literal da banda desenhada. Jean-Luc Godard fez uma vez uma história do cinema em que colocava o cinema a falar de si próprio, através de citações. A bd é ou não é o meio em que se fala do holocausto com ratinhos? Que fazer disso quando a bd for considerada literatura, sem precisar de muletas? Quando tomarmos o Palácio de Inverno, faremos nós as regras.