Autor: Marcos Farrajota

Frank in the 3rd Dimension

Desenhos de Jim Woodring. Conversão anáglifa de Charles Barnard. Fantagraphics Books, 2015

O filme Avatar fez com que a tecnologia 3-D voltasse à baila de forma histérica, reacção normal segundo a História do cinema. O mercado do 3-D é assim mesmo que funciona, de tempos a tempos, alguém faz um filme 3-D, ele vai ter algum impacto de público e com esse sucesso toda a gente volta-se a lembrar desta tecnologia. Depois de 2009, não houve filme de Hollywood que não fosse necessário meter uns óculos parvos para entrar na sala de cinema. Outra coisa estranha do fenómeno 3-D é que quando ele “bate” no cinema é imediatamente revisitado no mercado livreiro…

O efeito anáglifo, ou 3-D, é fácil de realizar imprimindo a mesma imagem duas vezes, uma a vermelho e outra a azul com algum espaço de diferença entre as impressões. Os olhos baralham-se e transmitem pró cérebro a famosa ilusão de destacar detalhes da imagem em camadas de profundidade. Andava o Avatar pelas bocas do mundo e o colectivo serigráfico de Marselha Le Dernier Cri já atacava com o livro Acid Arena de Dave 2000, em que juro que fiz aquela coisa parva de meter a mão para tentar tocar naquelas imagens de cadáveres mutantes. Silly me! Em 2011, o festival de arte gráfica Crack, em Roma, teve como tema a “3-D Revolution” e onde andava por lá o público de óculos vermelhos-azuis no meio das galerias cheias de publicações independentes. Creio que até cheguei a ver um livro espanhol de poesia ilustrada a usar 3-D… Ou terei alucinado?

Esta tecnologia não é nova, tem origens no século XIX com a criação da estereoscopia – lembram-se do CD dos Tool, 10 000 days com arte de Alex Grey? É isso a estereoscopia! Lá para os anos 30 descobriu-se os famosos óculos mas são nos anos 50 a “época de ouro” do cinema 3-D… e da BD 3-D! Ao que parece Joe Kubert (1926-2012) descobriu uma forma mais fácil de reproduzir o efeito 3-D para impressão e deu o grande impulso vendendo a patente para o “comic-book” The Mighty Mouse.

No cinema é fácil de explicar estes ondas de popularidade seguidas de esquecimento posterior. O efeito 3-D é isso mesmo… um efeito. Um mero elemento decorativo, uma ilusão supérflua que nada contribui para o filme em si. Pode-se dizer o mesmo para a BD 3-D, e tal como no cinema, os livros de BD 3-D vão e voltam podendo-se encontrar ao longo do século XX alguns exemplos de uso mas resume-se a uma mera diversão simpática e de pouca ou nenhuma aventura artística. O que dizer de uma mini-série tonta como o Adolescent Radioactive Black Belt Hamsters 3D (Eclipse; 1986) de Donny Chin (a) e Tommy Sutton (d)? O título diz tudo, creio… Mesmo o comix underground 3D Deep Comix (Kitchen Sink; 1970) de Don Glassford também não ajuda muito com as suas piadinhas entre o Gotlib frouxo e a ganzaria, além de que passados 46 anos o papel amareleceu e perguntou-me porque guardo este monte de folhas agrafadas! Tal é o seu aspecto manhoso, os vermelhos e azuis estão empastelados num papel amarelecido. Invés de parecer um “comic-book” parece antes um mutante do Toxic Avenger, garanto-vos!!!

Não conhecendo tudo o que foi feito neste campo, só me lembro do uso do 3-D com alguma coerência (narrativa) no segmento final do The League of Extraordinary Gentlemen: Black Dossier (Wildstorm; 2008) por Alan Moore (a) e Kevin O’Neill (d). Outro exemplo interessante é o de Edgar Pêra com uma “fotonovela transrealista” no número seis da revista Gerador (2015), “Long Live Cinesapiens! Death to realits!”. Na realidade a fotonovela são frames sacados ao filme Cinesapiens, em que o 3-D serve para metralhar um manifesto que afirma que o Cinema é mais importante que a realidade. Se for verdade, que melhor tecnologia a usar que a do 3-D?

Em BD parece não fazer sentido usá-lo a não ser para mero fogo-de-artifício. Nunca se sabe quem poderá aparecer um dia destes com uma boa ideia! Até lá parece-me que o seu uso é mais seguro estar confinado a imagens únicas como este livro ilustrado de Jim Woodring (n. 1952).  Tal como no livro do Dave 2000, lá fui “tocar” nas imagens outra vez, caindo na esparrela e no ridículo – ainda mais do que na primeira vez porque a experiência com o Acid Arena tinha sido há pouco tempo. Ser quarentão e ser enganado como se fosse uma criança com estes livros espero que prove a qualidade deles, especialmente o trabalho de Woodring, um ser humano estranho que até aos 15 anos tinha sérias dificuldades em distinguir a realidade da fantasia – foi o Edgar Pêra me contou no ano passado. Já agora vejam as suas entrevistas “Cinekomix” ao autor norte-americano por Pêra em youtube.com/watch?v=JP0oSaUQn5E

Frank é uma criação de Woodring de 1990 que apesar de estar na linhagem antiga da BD e dos desenhos animados em produzir “bonecos antropomorfizados” não se consegue definir lá muito bem esta criatura. É um gato? Um Cão? Esquilo? Um roedor das Américas? E se Frank já é um gajo estranho, diria que vive num mundo mais estranho ainda, baptizado pelo autor como “Unifactor”. Esse mundo poderia ser definido como uma má trip na “cartoonlândia” da Warner Bros, repleto de figuras sinistras, algumas não, até são fofinhas, só que não convém ter muitas ilusões!

Em Unifactor estamos a explorar o desconhecido, sem turismo controlado por um guia local ou um GPS e tradutor do Smartphone. É por isso que convém estar SEMPRE em estado de alerta. SEMPRE! Se no nosso mundo não se poder fiar muito no “bem” ou no “mal”, são termos iguais à característica instável da água que tanto pode ser sólida num momento como líquida ou gasosa noutro. Em Unifactor desconfio que nem haja água para tanta mudança constante de comportamentos neste pequeno universo – lembra o irracional Gon de Tanaka que prova que não há moral no reino animal.

Se nas BDs de Frank, a narrativa facilita essa conclusão, neste livro de 30 imagens horizontais, separadas e sem relação sequencial, o neófito ao Unifactor leva uma paulada na cabeça. Cada ilustração mostra que “tudo de errado” e “tudo de porreiro” está a acontecer exactamente ao mesmo tempo – e não se sabe o que isso tudo significa realmente. Tem piada pensarmos que esta percepção, com uma pontinha de epifania, de “tudo ao mesmo tempo” é dada por estas imagens estáticas impressas em folhas… Magia?

Que sombras escondem as imagens quando Frank, acompanhado pelo seu “cachorro-casa” (que raio de animal doméstico é este, alguém me explica!?), estão num deserto a pescar (!) serpentes furiosas? Ou quando eles oferecem um chupa-chupa ao “porco humano” (uma das criaturas mais deploráveis do Unifactor, acreditem!) que alegremente chafurda na sua pocilga de restos genéticos? Mesmo quando ouvem uma rã a tocar banjo ou tomam uma soneca de fim de tarde (fim de tarde?) num belo barco que podia ser um moliceiro decorado com os mais belos rococós indianos alguma vez imaginados, não deixo de olhar para as imagens à procura de algo obsceno que estrague os cenários bucólicos.

A chave destes mistérios reside numa ilustração em que o “porco-humano”, com um pau, abre uma frecha no tecido espacial. Dessa fissura transborda nhanha plasmática, como se Unicord fosse um “Matrix” (quando fazem o Matrix em 3-D?) ou como se fosse um papel de parede em que por detrás dele está todo o estuque, pregos, betão, tijolo ou o que faz segurar uma casa. O bastidor é repleto de imobilidade, matéria-prima, entulho, velhice… algo que nos perturba porque não é suposto vermos essa estrutura.

Se todos nós ambicionamos um Éden e tentamos com as nossas morais manter o ambiente ao redor limpo, Woodring sabe que nunca haverá um Éden climatizado. Ele diz-nos que somos apenas criaturas em Karmas infinitos, sem sentido e boçais e por mais que construamos um jardim catita, haverá sempre uma praga de mosquitos para nos lixar o gozo divino de curtir esse recanto paradisíaco. Woodring não é um “freak”, é um “meta-freak”, daqueles cujas visões deturpadas ultrapassaram a pobreza deste mundo Pop e Peter Pan. Não faltam desde os anos 60 muitas BDs “freaks” em que o enredo é baseado em caminhadas exploratórias pelo Universo e pela Verdade. Infelizmente a maior parte dessas BDs parecem ter uma lógica dos jogos de computador –  boring!!! – em que não se sente empatia pelas personagens que elas morram ou se iluminem. Frank apesar de ser o que for – é um boneco antropomorfizado ponto – consegue ser mais apelativo que algumas representações humanas como o explorador Giuseppe Bergman do Manara ou o Dungeon Quest do Joe Daly.

Frank faz-nos mergulhar para dentro do seu mundo incongruente. Desculpem falar no plural mas admito que fico arrepiado com o que acontece com ele e as outras criaturas quando são torturadas ou comidas vivas, imediatamente penso em acidentes de automóvel ou um tiro certeiro de um “sniper”, eventos que terminam vidas humanas de forma tão aleatória tal como aquele espermatozóide que foi mais lesto que os outros…

Se a BD tem esta eterna tradição, tipo sarna, da “bonecada”, o pior é vermos a Realidade a ser invadida pelo seu enorme merchandising de estatuetas, porta-chaves, cuecas, barras de chocolate, Cosplay e o catano. Woodring é um autor de BD que já teve as suas criações transformadas em produtos comerciais como bonecos em vinilo com a esfinge de Frank. Um livro de desenhos em 3-D poderia ser cinicamente uma dessas vaidades ou de aproveitamento do estatuto deste autor, no entanto, este livro não é um subproduto comercial, pelo contrário, é autónomo e é válido.

Não gosto de “toys” e outros subprodutos a darem razão aos avisos do J.G. Ballard mas acho que os do Woodring são os únicos que cumprem o totemismo que se procura. Se por detrás de cada estátua há uma história (neste caso aos quadradinhos), as dele lembram que não há enganos “lá fora”, com ou sem óculos, 3-D ou não. Frank ensina que só nós é que nos podemos enganar a nós próprios…

Meses depois #2

hipho3-fcHip Hop Family Tree (HHFT) vai no terceiro volume (Fantagraphics; 2016) com Ed Piskor a cobrir os anos de 1983 e 1984. Anos de lenta transformação mas que irão levar o Hip Hop a um fenómeno global.  O Hip Hop nessa altura começa a ser documentado nos primeiros livros e filmes, a música registada já vai além dos singles de 7” passando a haver mais LPs, namora o status quo como o basquetebol  e eis cada vez maiores movimentações de dinheiro para investir nesta nova forma de música. Assim, assistisse a fabricações de “stars” como os Fat Boys (ex-Disco Three) ou dos tolos dos Beastie Boys. Nos bastidores há o encontro dos produtores Rick Rubin e Russel Simons que revolucionarão esta música para já não falar no império que irão montar, a editora Def Jam.

E nessa construção também podemos ler como vieram parar à baila o Flavor Flav (futuro “hypeman” dos Public Enemy) ou o LL Cool J (futuro galã da cena) ou ainda a continuação da vida miserável de KRS-One que passa pelo tráfico de droga, detenções prisionais e a condição de sem-abrigo. Justamente os problemas de dinheiro e a vida de bairro começam a ser mais recorrentes nos temas desta época como também o outro lado da mesma moeda, a ostentação “bling bling”.

Há mais enfoque no Breakdance que me queixava ter sido deixado para trás nos outros volumes, especialmente porque foi esta dança que irá popularizar o Hip Hop fora dos EUA – ou pelo menos em Portugal, segundo os testemunhos de vários músicos no livro Ritmo & Poesia: Os Caminhos do Rap (Assírio & Alvim; 1997).

É um bocado infantil esta sensação de querer mais volumes desta série porque já sei onde a história vai parar – ou não  – mas quero saber à medida que mo contam… Felicidade! Já saiu o quarto volume… Já tá reservado!

 

23359742-_uy461_ss461_PS – Entretanto, em 2015, saiu Ghetto Brother: Warrior to Peacemaker, pela NBM, que complementa os volumes da HHFT. Romance gráfico de Julian Voloj e Claudia Ahlering conta a história de Benjy Melendez, que criou nos finais dos anos 60, um dos maiores gangues do Bronx, os Ghetto Brothers. Grupo multirracial, conseguiu obter tréguas entre as gangues quando a violência escalava e davam concertos em edifícios abandonados, iniciando assim as míticas “block parties” que originaram o Hip Hop. Como BD, os desenhos e a narração são naïves e toscos, é uma BD um bocado confusa e previsível – a ignorância da cultura judaica de Melendez é constrangedora – mas a leitura deste livro completa o que Piskor deixou um bocado ao acaso desde do inicio da HHFT

Meses depois

16326Achei que seria porreiro no meio destas minhas resenhas críticas no sítio da Mundo Fantasma escrever uns “anexos” aos livros, sobretudo porque há muita BD que se publica em vários volumes, o que obrigaria a ter uma escrita repetitiva ou desactualizada à medida da leitura de novos “números” desta (enorme) tradição de folhetim na BD, válida para o Hip Hop Family Tree como para os tradicionais “comic-books” de diversão pura e dura.

E falando destes… Há meses atrás comentei sobre o primeiro volume da “Academia do Guarda-Chuva” e como aquilo soava a “star-system” do pior. Um gajo famoso, um Rock Star, mete-se a escrever BD só porque… é famoso. Se no primeiro volume, “Suite do Apocalipse, o Gerard Way não apresentava razões de ser diferente à mediocridade da indústria norte-americana já Dallas (Dark Horse; 2009), a segunda colecção da série, é muito mais convincente e até engulo um sapo se for preciso em relação ao vocalista xunguita loiro platinado dos My Chemical Romance.

O(s) “plot(s)” tornaram-se imprevisíveis e Way abusa de forma positiva aquela máxima dos “super-heróis” em que quanto tudo mais muda mais tudo fica na mesma. Se esta família de super-heróis disfuncionais não transmitem nenhuma empatia com o leitor (será porque tenho 43 anos?), por outro lado ou por isso mesmo, tornam-se em personagens extremamente maleáveis para se aplicar a extravagância que se quiser. Foi o que Way fez. Resulta numa diversão inteligente q.b. mesmo com rapinanços como a cena pós-vida de Séance com um cowboy é um bocado como os encontros com o John Wayne na série Preacher (de Garth Ennis) ou é impressão minha?

Depois há toda a vacuidade que os americanos tratam os seus traumas políticos (a guerra do Vietname e o assassinato de John F. Kennedy) para que não se pense muito sobre os assuntos, limitando a reduzi-los a um imaginário Pop. Ainda assim Dallas é perfeito para no sofá domingueiro ou para quem vai de manhã no Metro acompanhado pelos nossos cidadãos que falam altíssimo ao telemóvel — dá para perceber tudo ainda assim!

Sobre o grafismo de Bá, nada a declarar.

Vá, aumento uma estrela na pontuação! Ou um sapo…

Copra

Argumento e desenho de Michel Fiffe. Bergen Street Comics, 2014-15

Quem tem agora os seus 40 e tais anos, deve lembrar-se e guarda com (excessivo) carinho o momento quando leu pela primeira vez as BDs Ronin e Regresso do Cavaleiro das Trevas (Dark Knight Returns), ambas de Frank Miller. Para quem fosse leitor de super-heróis e de outra literatura popular, apanhar no quiosque da rua estas “edições de luxo” (era o que vinha escrito na capa) comparando com as revistas mais pequenas que o A5 com cores simples em papel manhoso da Abril-Morumbi-Não-Sei-Quê-Jovem, era óbvio que toda aquela “brilhantina” era uma revelação e uma inspiração. O fim da inocência da qualidade do trabalho do Frank Miller tornou-se óbvia quando este passou a escrever a série Sin City – mal acabei de ler o primeiro volume nos anos 90 troquei-o por ganza porque o meu “dealer” curtia de BD – e quando ele começou a abrir a boca para arrotar postas de pescada fascistas dignos de um Donald, pato ou Trump tanto faz.

Sabendo disto tudo, garanto-vos que não tive coragem de ir reler o Ronin para não confrontar a minha juventude tola e ficar desiludido com o trabalho. Mesmo assim tive mais uma abertura de olho… Se era assumido que Miller gamou tanto o Moebius como o Lone Wolf & Cub de Koike e Kojima, também surripiou o meister-trip Philip K. Dick (1928-82), pelo menos aquela personagem principal que não tinha membros e que graças à sua telecinesia recriava um corpo, máquinas e outra realidade. Querem saber os títulos dos romances de Dick que Miller sacou ideias? A cultura Pop é mesmo assim. Ela regurgita-se, come-se e defeca-se sobre si mesma: Pop Will Eat Itself! Desculpem a repetição. Não que isso me incomode porque Pop ou não, sou adepto do “copyleft” (se não mesmo do “copytheft”) quando se faz algo que acrescente à obra original [qual? não há obras originais!] É deveras nojento ver patentear sejam sementes da Natureza sejam “ratos-miques”. A cultura é universal e deve ser usada, mudada e melhorada por quem quer que seja. Se há algo de especial no mundo Digital é que ele está a ajudar a lutar contra o abuso e corrupção do “copyright”.

O caso da música é o mais mediático porque foi o primeiro a sofrer mudanças radicais como a sua desmaterialização do suporte físico. A perseguição das editoras fonográficas aos “piratas” que usavam “samplers” (excertos de músicas já existentes) transformou-se numa perseguição aos “piratas” que sacam tudo da ‘net [nós, o povo!]. Os mesmos que antes perseguiram o DJ Dangermouse por ter feito, em 2004, o disco The Grey Album que combinava as vozes do Black Album de Jay-Z com os instrumentais do “álbum branco” dos Beatles, no ano seguinte já o contratavam para produzir o segundo disco dos Gorillaz. A que se deve esta mudança?

A mesma razão que deixou os Negativland numa encruzilhada criativa. O que pode fazer este grupo de “cultural jammers” quando agora todos nós fazemos o mesmo? Nas nossas contas de Youtube metemos vídeos de Black Metal mais satânico que Deus criou como os de gatos mais fofos que “sextoys”; enviamos “forwards” de imagens de políticos a dizerem coisas que não disseram mas que fantasiamos que disseram; fazemos “mash-ups” de músicas; misturamos textos e imagens no Word ou no Photoshop ou as duas coisas. Somos “copy/paste”. Sempre fomos mas faltavam as ferramentas digitais para nos facilitar a vida. E é impossível processar a Humanidade inteira, embora se tente sempre arranjar um caso para dar o exemplo, sobretudo aqueles que dão nas vistas, como foi com Katz de Ilan Manouach.

Mas há outra razão mais perversa, as editoras fonográficas perceberam que a cultura do Remix permite que as músicas dos seus catálogos sejam divulgadas, esticadas no tempo para além da sua própria validade comercial e transformadas em ícones para além das capacidades reais do departamento de Marketing. Quando um DJ faz uma nova versão de um tema da Lady Gaga na realidade está a promove-la e até em contextos em que não seria escutada. Eis uma acção promocional extraordinária e inesperada para a editora e para o artista!

E nos “comics”? Com seu habitual atraso cultural ainda não se sentiu essa mudança de paradigma mas já podemos encontrar pistas desde os finais dos anos 90 pelas centenas de versões de arquétipos dos principais Super-Heróis da Marvel e DC Comics que aparecem em editoras independentes como a versão gay do Super-Homem e Batman em The Authority. Este exemplo é dos melhores, imagino que nos púdicos anos 40 a questão da homossexualidade seria tão escandalosa como a violação da sacrossanta propriedade comercial! Basta lembrar a confusão legal que a DC criou com o processo contra o Shazam! / Captain Marvel, por ser uma “cópia” do seu Superman. E como “trash breeds trash” este processo ainda hoje dá confusões – falo do caso Marvelman / Miracleman.

Isto para chegar ao mais estranho desdobramento que encontrei recentemente, Copra de Michel Fiffe. É um “ripanço” total à série Suicide Squad (uma equipa de super-vilões da DC Comics transformados num grupo operacional ao serviço do imperialismo dos EUA) e outras personagens secundárias da Marvel como Dr. Strange. O que tem o Copra de especial? Muita coisa e tal como já tinha referido no artigo sobre Umbrella Academy, se o cerne absurdo da produção dos “comics” norte-americanos continua a ser o ritmo de trabalho, então Fiffe sem um grupo de assistentes, parceiros ou editores revela nas cartas dos leitores do número 8 (e no volume 2 compilado), como faz cada número desta série independente:

levo uma semana para fazer o argumento e os diálogos de um número (…) faço um modelo para planear a fluidez visual, os esboços aparecem devagar (…) faço a legendagem à mão no último dia da primeira semana. Reescrevo, também (…) consigo fazer 4 páginas por dia, senão duas e meia – 3 no máximo. São 24 páginas numa semana e meia, o que deixa-me uma semana para colorir os originais, digitalizá-los, retocá-los, fazer a capa e tudo mais para imprimir. A semana 5 é gasta à espera dos livros para enviá-los. Quando chegam, preparo as facturas, recebo encomendas, envio-as, recebo reclamações, promovo na ‘net, faço uma entrevista ou outra para um blogue e volto para a relativa calma semana 1.

Comparando isto com a “complicada” agenda musical e de escrita de Gerard Way, a sério que não resisto: that shit is for wimps!

Desde 2011 que Fiffe resolveu fazer um “comic-book” mensal, uma tarefa colossal que em pelo menos 18 números que li, compilados entretanto em três volumes, não perdeu nem a energia nem a extravagância visual. Ele estilhaça o género tal como Miller o fez há 30 anos atrás, sendo que Fiffe fez uma melhoria a vários níveis destes super-heróis da quinta divisão, seja pelo seu grafismo dinâmico e narrativa mirabolante.

A questão no entanto é porque a DC não atacou Fiffe? É que as semelhanças das personagens e dos conceitos são tão óbvios que até um ligeiro “nerd” como eu topa logo. Safo-se? Ou está a safar-se? Em 2014 a fama da série rendeu-lhe uma encomenda para a Marvel (a série All-New Ultimates), abrindo-se as portas para a competitiva indústria dos Super-Heróis. Tal como um “remix” de um tema inútil da “LéidiGugu”, o trabalho de Fiffe ajudou a recuperar uma série medíocre dos anos 80. Invés de lhe roubar público (acusação idiota que aparece sempre em tribunal contra quem usa material alheio!) esta foi relembrada e reeditada com o consequente “cash-in”. Se fosse ainda ganzadito até diria que há aqui uma conspiração marada porque Suicide Squad entretanto teve uma adaptação para cinema este ano! Topam?

Será que uma indústria híper-excitada pela “novidade”, ela fecha os olhos a estas situações porque lhes ajuda a vender as BDs velhas e originais que já ninguém quer saber? Porque é também uma forma de encontrar “sangue novo”? Não sei responder, no caso da música isso já é óbvio. Na BD não sei…

Copra

Copra

Só tenho três certezas em relação a isto tudo, o Suicide Squad (o filme) deve estar a dar um lucro espantoso, o Ronin vai morrer nas estantes da casa dos meus pais e vou continuar a comprar as compilações do Copra que esgotam a olhos vistos sendo que não deverei reler o Copra até estar internado num centro de dia…