Categoria: Banda Desenhada

Megg, Mogg e Mocho

Argumento e desenho de Simon Hanselmann. MMMNNNRRRG, 2016.

Um dos acontecimentos mais bizarros da banda desenhada norte-americana em 2016 foi a usurpação da personagem Pepe, criada por Matt Furie, pelo movimento de extrema direita “alt-right”, fundamental à ascensão política de Donald Trump.

Criado em 2005 para a série Boys Club, Pepe era, desde 2008, um dos memes mais populares da internet, na sua expressão mais sorumbática (feels bad man / sad frog). Desde o momento em que a primeira vinheta foi apropriada, o desenho recebeu novo corpo, cores, expressões, e claro, legendas. Antes ícone da bacanidão, começou a aparecer de suástica, avatar de boquinhas xenófobas e cruzados anti-”politicamente correcto”.

Boys Club é uma stoner comedy, ou, uma celebração de zé-ninguéns a pastar erva fechados em casa, rapando comida de pacote, kitsch televisivo, e videojogos, com uma perninha de sublime espiritual à décima-quinta hora da moca. O género literário é atreito a autocolantes geracionais de gozo das aspirações dos papá —“memes”, como se diz na vulgata — mas a instrumentalização política de coisa tão afável chocou pelo impudor.

Pode uma stoner comedy ser mais do que tshirts para bros e entretém de sessões de bongo? Pode. Prova disso é Megg, Mogg e Mocho, agora editada pela MMMNNNRRRG: tão janada como a outra, mas no seu estupor, crónica negativa de um autor crescido no buraco do cu que é a Tasmânia, com ganas de se travestir, e de carreira tardia (só decide dedicar-se a sério na roda dos 30).

Tal como Boys Club, MMM tem animais falantes, talvez o único mandamento ditado a Moisés atinente à banda desenhada, e segue a estrutura de uma “sitcom”, com piadolas típicas da intersecção espacial intrafamiliar ou de vizinhança patente nas séries americanas de e para gente sentada. Por vezes há expedições ao “lá fora”, fantasmático, esparsamente povoado por polícias, parolos, e normalóides.

Megg e Mogg, com duplos “gs” para não infringir os direitos do casal bruxa-gato que protagonizava uma série infantil dos anos 70, vivem numa interminável stasis que não se percebe se é determinada pela longa depressão de Megg, se pela falta de elegibilidade de Mogg no centro de emprego. Partilham casa com o Mocho, um idiota normativo que insiste em “levantar-se cedo para ir trabalhar”, “poupar dinheiro”, ou “arranjar uma namorada”, logo, alvo de humilhações rituais. Para dar um exemplo, quando o Mocho faz anos, o presente dele é ser “violado”, revelando que os seus laços de sociabilidade são provavelmente um indício de síndrome de Estocolmo.

A corte de Megg e Mogg inclui um quarto personagem, raramente com honras de título, mas fundamental para se perceber a dinâmica de grupo: o Lobisomem Jones, um fura-vidas com demasiada pica que aparece sempre a tempo de mandar a casa abaixo com a) concursos de nojeira, b) novos e experimentais cocktails de drogas e álcool, c) os seus filhotes horríveis e irrequietos, ou d) parafilias. É sempre ele que vai mais longe que os outros, e não é raro continuar a exibir-se quando já não lhe dão atenção. Com ele a stoner comedy torna-se uma variante obscura de performance art.

Os episódios de Megg, Mogg e Mocho representam um período de especialização artística. Hanselmann brilha em condições de claustrofobia visual, e a pouca evolução a que podemos assistir só diz respeito ao refinamento da técnica. Está sempre lá a grelha rígida, uma arrojada vinheta de título, o jogo entre close-up e plano americano típico da tv, e mais importante, a cor de pincel.

A cor, pelo preço, nunca dá jeito à publicação independente, e quando há, é porque no artista, traço e cor são inseparáveis. Hanselmann utiliza uma caixinha de aguarelas, preenchendo dentro da linha do lápis (noutra camada), e deixa borrar livremente dentro do contorno. Nesta aguarela, a tinta nunca tem a espessura do pastel ou do óleo, logo, não resiste à digitalização e contribui para um resto matérico na página final. Isto, tanto com o conteúdo, torna-se uma espécie de Real lacaniano na era do digital certinho.

Na Alemanha, Fraça, ou Espanha, publicam Hanselmann em formato álbum com algum luxo. Por cá, temos uma edição mais modesta com pouquíssimo eco, embora realize uma experiência importante no panorama nacional. Face ao tradicional pindérico do calão traduzido, usa português corriqueiro e sabujo, uma linguagem fluída que regionaliza o original, um ersatz tipo Dragonball Z.

As historinhas neste volume são uma selecção mais curta do que veio a ser o mono da Fantagraphics chamado Megahex (já continuado em Megg, Mogg and Owl in Amsterdam, 2016). Parecem regressar circularmente à origem, mas esporadicamente adivinha-se um desastre. Sabemos, lendo uma história ausente deste volume, que o Lobisomem Jones cometerá suicídio no Natal de 2017. Que podemos fazer de corolário tão medonho? Talvez MMM tenha todas as virtudes da tragédia: a audiência só se conhece pela catarse. Venham daí esses monstros todos!

Meses depois #2

hipho3-fcHip Hop Family Tree (HHFT) vai no terceiro volume (Fantagraphics; 2016) com Ed Piskor a cobrir os anos de 1983 e 1984. Anos de lenta transformação mas que irão levar o Hip Hop a um fenómeno global.  O Hip Hop nessa altura começa a ser documentado nos primeiros livros e filmes, a música registada já vai além dos singles de 7” passando a haver mais LPs, namora o status quo como o basquetebol  e eis cada vez maiores movimentações de dinheiro para investir nesta nova forma de música. Assim, assistisse a fabricações de “stars” como os Fat Boys (ex-Disco Three) ou dos tolos dos Beastie Boys. Nos bastidores há o encontro dos produtores Rick Rubin e Russel Simons que revolucionarão esta música para já não falar no império que irão montar, a editora Def Jam.

E nessa construção também podemos ler como vieram parar à baila o Flavor Flav (futuro “hypeman” dos Public Enemy) ou o LL Cool J (futuro galã da cena) ou ainda a continuação da vida miserável de KRS-One que passa pelo tráfico de droga, detenções prisionais e a condição de sem-abrigo. Justamente os problemas de dinheiro e a vida de bairro começam a ser mais recorrentes nos temas desta época como também o outro lado da mesma moeda, a ostentação “bling bling”.

Há mais enfoque no Breakdance que me queixava ter sido deixado para trás nos outros volumes, especialmente porque foi esta dança que irá popularizar o Hip Hop fora dos EUA – ou pelo menos em Portugal, segundo os testemunhos de vários músicos no livro Ritmo & Poesia: Os Caminhos do Rap (Assírio & Alvim; 1997).

É um bocado infantil esta sensação de querer mais volumes desta série porque já sei onde a história vai parar – ou não  – mas quero saber à medida que mo contam… Felicidade! Já saiu o quarto volume… Já tá reservado!

 

23359742-_uy461_ss461_PS – Entretanto, em 2015, saiu Ghetto Brother: Warrior to Peacemaker, pela NBM, que complementa os volumes da HHFT. Romance gráfico de Julian Voloj e Claudia Ahlering conta a história de Benjy Melendez, que criou nos finais dos anos 60, um dos maiores gangues do Bronx, os Ghetto Brothers. Grupo multirracial, conseguiu obter tréguas entre as gangues quando a violência escalava e davam concertos em edifícios abandonados, iniciando assim as míticas “block parties” que originaram o Hip Hop. Como BD, os desenhos e a narração são naïves e toscos, é uma BD um bocado confusa e previsível – a ignorância da cultura judaica de Melendez é constrangedora – mas a leitura deste livro completa o que Piskor deixou um bocado ao acaso desde do inicio da HHFT

Meses depois

16326Achei que seria porreiro no meio destas minhas resenhas críticas no sítio da Mundo Fantasma escrever uns “anexos” aos livros, sobretudo porque há muita BD que se publica em vários volumes, o que obrigaria a ter uma escrita repetitiva ou desactualizada à medida da leitura de novos “números” desta (enorme) tradição de folhetim na BD, válida para o Hip Hop Family Tree como para os tradicionais “comic-books” de diversão pura e dura.

E falando destes… Há meses atrás comentei sobre o primeiro volume da “Academia do Guarda-Chuva” e como aquilo soava a “star-system” do pior. Um gajo famoso, um Rock Star, mete-se a escrever BD só porque… é famoso. Se no primeiro volume, “Suite do Apocalipse, o Gerard Way não apresentava razões de ser diferente à mediocridade da indústria norte-americana já Dallas (Dark Horse; 2009), a segunda colecção da série, é muito mais convincente e até engulo um sapo se for preciso em relação ao vocalista xunguita loiro platinado dos My Chemical Romance.

O(s) “plot(s)” tornaram-se imprevisíveis e Way abusa de forma positiva aquela máxima dos “super-heróis” em que quanto tudo mais muda mais tudo fica na mesma. Se esta família de super-heróis disfuncionais não transmitem nenhuma empatia com o leitor (será porque tenho 43 anos?), por outro lado ou por isso mesmo, tornam-se em personagens extremamente maleáveis para se aplicar a extravagância que se quiser. Foi o que Way fez. Resulta numa diversão inteligente q.b. mesmo com rapinanços como a cena pós-vida de Séance com um cowboy é um bocado como os encontros com o John Wayne na série Preacher (de Garth Ennis) ou é impressão minha?

Depois há toda a vacuidade que os americanos tratam os seus traumas políticos (a guerra do Vietname e o assassinato de John F. Kennedy) para que não se pense muito sobre os assuntos, limitando a reduzi-los a um imaginário Pop. Ainda assim Dallas é perfeito para no sofá domingueiro ou para quem vai de manhã no Metro acompanhado pelos nossos cidadãos que falam altíssimo ao telemóvel — dá para perceber tudo ainda assim!

Sobre o grafismo de Bá, nada a declarar.

Vá, aumento uma estrela na pontuação! Ou um sapo…

Copra

Argumento e desenho de Michel Fiffe. Bergen Street Comics, 2014-15

Quem tem agora os seus 40 e tais anos, deve lembrar-se e guarda com (excessivo) carinho o momento quando leu pela primeira vez as BDs Ronin e Regresso do Cavaleiro das Trevas (Dark Knight Returns), ambas de Frank Miller. Para quem fosse leitor de super-heróis e de outra literatura popular, apanhar no quiosque da rua estas “edições de luxo” (era o que vinha escrito na capa) comparando com as revistas mais pequenas que o A5 com cores simples em papel manhoso da Abril-Morumbi-Não-Sei-Quê-Jovem, era óbvio que toda aquela “brilhantina” era uma revelação e uma inspiração. O fim da inocência da qualidade do trabalho do Frank Miller tornou-se óbvia quando este passou a escrever a série Sin City – mal acabei de ler o primeiro volume nos anos 90 troquei-o por ganza porque o meu “dealer” curtia de BD – e quando ele começou a abrir a boca para arrotar postas de pescada fascistas dignos de um Donald, pato ou Trump tanto faz.

Sabendo disto tudo, garanto-vos que não tive coragem de ir reler o Ronin para não confrontar a minha juventude tola e ficar desiludido com o trabalho. Mesmo assim tive mais uma abertura de olho… Se era assumido que Miller gamou tanto o Moebius como o Lone Wolf & Cub de Koike e Kojima, também surripiou o meister-trip Philip K. Dick (1928-82), pelo menos aquela personagem principal que não tinha membros e que graças à sua telecinesia recriava um corpo, máquinas e outra realidade. Querem saber os títulos dos romances de Dick que Miller sacou ideias? A cultura Pop é mesmo assim. Ela regurgita-se, come-se e defeca-se sobre si mesma: Pop Will Eat Itself! Desculpem a repetição. Não que isso me incomode porque Pop ou não, sou adepto do “copyleft” (se não mesmo do “copytheft”) quando se faz algo que acrescente à obra original [qual? não há obras originais!] É deveras nojento ver patentear sejam sementes da Natureza sejam “ratos-miques”. A cultura é universal e deve ser usada, mudada e melhorada por quem quer que seja. Se há algo de especial no mundo Digital é que ele está a ajudar a lutar contra o abuso e corrupção do “copyright”.

O caso da música é o mais mediático porque foi o primeiro a sofrer mudanças radicais como a sua desmaterialização do suporte físico. A perseguição das editoras fonográficas aos “piratas” que usavam “samplers” (excertos de músicas já existentes) transformou-se numa perseguição aos “piratas” que sacam tudo da ‘net [nós, o povo!]. Os mesmos que antes perseguiram o DJ Dangermouse por ter feito, em 2004, o disco The Grey Album que combinava as vozes do Black Album de Jay-Z com os instrumentais do “álbum branco” dos Beatles, no ano seguinte já o contratavam para produzir o segundo disco dos Gorillaz. A que se deve esta mudança?

A mesma razão que deixou os Negativland numa encruzilhada criativa. O que pode fazer este grupo de “cultural jammers” quando agora todos nós fazemos o mesmo? Nas nossas contas de Youtube metemos vídeos de Black Metal mais satânico que Deus criou como os de gatos mais fofos que “sextoys”; enviamos “forwards” de imagens de políticos a dizerem coisas que não disseram mas que fantasiamos que disseram; fazemos “mash-ups” de músicas; misturamos textos e imagens no Word ou no Photoshop ou as duas coisas. Somos “copy/paste”. Sempre fomos mas faltavam as ferramentas digitais para nos facilitar a vida. E é impossível processar a Humanidade inteira, embora se tente sempre arranjar um caso para dar o exemplo, sobretudo aqueles que dão nas vistas, como foi com Katz de Ilan Manouach.

Mas há outra razão mais perversa, as editoras fonográficas perceberam que a cultura do Remix permite que as músicas dos seus catálogos sejam divulgadas, esticadas no tempo para além da sua própria validade comercial e transformadas em ícones para além das capacidades reais do departamento de Marketing. Quando um DJ faz uma nova versão de um tema da Lady Gaga na realidade está a promove-la e até em contextos em que não seria escutada. Eis uma acção promocional extraordinária e inesperada para a editora e para o artista!

E nos “comics”? Com seu habitual atraso cultural ainda não se sentiu essa mudança de paradigma mas já podemos encontrar pistas desde os finais dos anos 90 pelas centenas de versões de arquétipos dos principais Super-Heróis da Marvel e DC Comics que aparecem em editoras independentes como a versão gay do Super-Homem e Batman em The Authority. Este exemplo é dos melhores, imagino que nos púdicos anos 40 a questão da homossexualidade seria tão escandalosa como a violação da sacrossanta propriedade comercial! Basta lembrar a confusão legal que a DC criou com o processo contra o Shazam! / Captain Marvel, por ser uma “cópia” do seu Superman. E como “trash breeds trash” este processo ainda hoje dá confusões – falo do caso Marvelman / Miracleman.

Isto para chegar ao mais estranho desdobramento que encontrei recentemente, Copra de Michel Fiffe. É um “ripanço” total à série Suicide Squad (uma equipa de super-vilões da DC Comics transformados num grupo operacional ao serviço do imperialismo dos EUA) e outras personagens secundárias da Marvel como Dr. Strange. O que tem o Copra de especial? Muita coisa e tal como já tinha referido no artigo sobre Umbrella Academy, se o cerne absurdo da produção dos “comics” norte-americanos continua a ser o ritmo de trabalho, então Fiffe sem um grupo de assistentes, parceiros ou editores revela nas cartas dos leitores do número 8 (e no volume 2 compilado), como faz cada número desta série independente:

levo uma semana para fazer o argumento e os diálogos de um número (…) faço um modelo para planear a fluidez visual, os esboços aparecem devagar (…) faço a legendagem à mão no último dia da primeira semana. Reescrevo, também (…) consigo fazer 4 páginas por dia, senão duas e meia – 3 no máximo. São 24 páginas numa semana e meia, o que deixa-me uma semana para colorir os originais, digitalizá-los, retocá-los, fazer a capa e tudo mais para imprimir. A semana 5 é gasta à espera dos livros para enviá-los. Quando chegam, preparo as facturas, recebo encomendas, envio-as, recebo reclamações, promovo na ‘net, faço uma entrevista ou outra para um blogue e volto para a relativa calma semana 1.

Comparando isto com a “complicada” agenda musical e de escrita de Gerard Way, a sério que não resisto: that shit is for wimps!

Desde 2011 que Fiffe resolveu fazer um “comic-book” mensal, uma tarefa colossal que em pelo menos 18 números que li, compilados entretanto em três volumes, não perdeu nem a energia nem a extravagância visual. Ele estilhaça o género tal como Miller o fez há 30 anos atrás, sendo que Fiffe fez uma melhoria a vários níveis destes super-heróis da quinta divisão, seja pelo seu grafismo dinâmico e narrativa mirabolante.

A questão no entanto é porque a DC não atacou Fiffe? É que as semelhanças das personagens e dos conceitos são tão óbvios que até um ligeiro “nerd” como eu topa logo. Safo-se? Ou está a safar-se? Em 2014 a fama da série rendeu-lhe uma encomenda para a Marvel (a série All-New Ultimates), abrindo-se as portas para a competitiva indústria dos Super-Heróis. Tal como um “remix” de um tema inútil da “LéidiGugu”, o trabalho de Fiffe ajudou a recuperar uma série medíocre dos anos 80. Invés de lhe roubar público (acusação idiota que aparece sempre em tribunal contra quem usa material alheio!) esta foi relembrada e reeditada com o consequente “cash-in”. Se fosse ainda ganzadito até diria que há aqui uma conspiração marada porque Suicide Squad entretanto teve uma adaptação para cinema este ano! Topam?

Será que uma indústria híper-excitada pela “novidade”, ela fecha os olhos a estas situações porque lhes ajuda a vender as BDs velhas e originais que já ninguém quer saber? Porque é também uma forma de encontrar “sangue novo”? Não sei responder, no caso da música isso já é óbvio. Na BD não sei…

Copra

Copra

Só tenho três certezas em relação a isto tudo, o Suicide Squad (o filme) deve estar a dar um lucro espantoso, o Ronin vai morrer nas estantes da casa dos meus pais e vou continuar a comprar as compilações do Copra que esgotam a olhos vistos sendo que não deverei reler o Copra até estar internado num centro de dia…