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Um falso problema

Daniel Clowes
Daniel Clowes.

Angoulême é uma convenção de banda desenhada. Não é de cinema, nem de tv, nem de “cultura pop”, é de banda desenhada e nesse aspecto é um bastião. Durante muitos anos a direcção do festival soube essencialmente que existia bd franco-belga (mesmo tendo atribuido o grande prémio a Will Eisner logo no segundo ano) e se tivessem continuado assim, seria uma opção tão respeitável como qualquer outra. Mas, começaram a mostrar o que mais se fazia pelo Mundo designadamente a partir de 1990 com o tema “Inglaterra” e também provavelmente pela primeira vez na Europa, com os japoneses através da editora Kodansha e da exibição do filme Akira de Katsuhiro Otomo. O grande prémio, que para quem não sabe é um prémio de carreira ((Le Grand Prix du Festival d’Angoulême est une récompense remise annuellement depuis 1974 lors du Festival international de la bande dessinée d’Angoulême à un auteur de bande dessinée pour récompenser sa carrière. Wikipedia.)) — não de um ano da carreira, nem de 10, ou de um álbum, ou de uma série — foi sempre essencialmente atribuído a franceses ((35 vezes, num total de 49, mas apenas sete vezes fora da esfera de edição franco-belga. Wikipédia.)).

Este ano, uma dessas associações de “causas” resolveu que nos 30 nomeados para o grande prémio, tinham obrigatoriamente de estar mulheres (não sei se exigem quota de 50%). Os nomes das autoras avançados como crime de lesa-majestade não estarem nomeadas e que eventualmente estiveram noutros anos, pura e simplesmente não se entendem se não for à luz de polémicas estéreis. Por exemplo, Marjane Satrapi que já esteve no Porto a convite do SIBDP e é uma autora adorada na nossa livraria, já foi nomeada mas a verdade é que não tem obra para um prémio de carreira, nem coisa que se pareça. É multipremiada em Angoulême e se continuasse a fazer bd, talvez merecesse o grande prémio daqui a 10 ou 20 anos. Infelizmente, o último livro saiu em 2004, depois disso dedicou-se à animação e ao cinema. Querem voltar a nomeá-la para cumprir quotas? Patético. Outro nome que li como possível é Aline Kominsky-Crumb… Estas pessoas que fazem estas sugestões pensam realmente que Aline Kominsky-Crumb, criou obra até 2016 que a coloca no mesmo patamar de Robert Crumb, que venceu em 1999? Não me parece possível, quanto mais credível.

Matt Madden que faz parte do júri e acordou tarde para o “problema”, mas apanhou o comboio da indignação e rapidamente passou para a primeira carruagem, em declarações ao site Robot6, ainda acrescenta a falta de representatividade das minorias. (Porque é que não vai antes ver o Star Wars? — aliás, grave e sem relação, é a ausência da Rey nos brinquedos.) Pessoalmente, já não tenho a mínima paciência para este politicamente correcto — “espalhamos justiça pelo mundo” — à americana. O ano passado ganhou Katsuhiro Otomo, aparentemente de uma minoria em França, embora eu julgue que os japoneses no Japão ainda são a maioria. E o autor que no fundo acabou por criar a situação foi (tristemente para mim) Daniel Clowes, é judeu, não sei se conta como minoria, nunca liguei muito a isso e não estava preocupado em agradar à comunidade judaica e muito menos ao Matt Madden, quando chamei à livraria “Mundo Fantasma”. Tal como não penso na Marjane Satrapi como mulher ou iraniana quando leio as obras dela, seria redutor na minha opinião. Limito-me a achar que está ali muito boa banda desenhada.

Segundo Matt Madden, para atribuir os prémios há duas mulheres num júri de sete; a concurso há 11 obras em 47 e ele acha que “está longe de representar a realidade, mas é um passo na direcção certa” (que insuportável bullshit). Que realidade ((Em França a percentagens de mulheres a trabalhar em bd é de 12% segundo a Wikipedia e é obviamente historicamente alta))? A das associações de “causas”? É que na realidade que eu conheço da criação de banda desenhada, 23,4% de mulheres autoras não existe em lado nenhum e mesmo que existisse, o critério deve ser esse ou, digamos, a qualidade das obras segundo o júri? No grande prémio — que celebra uma vida dedicada à arte —, um dos critérios julgo que deve ser existir uma carreira, pelo menos. Quando constatamos que um Alan Moore ainda não ganhou (a verdade nua e crua é que ganha apenas um autor por ano), eu diria que as mulheres (neste caso) e todos os outros, têm de escrever mesmo muito para poderem sonhar ganhar nos próximos anos.

Assim, temos criado mais um falso problema, mais uma “causa” da treta e um péssimo serviço prestado à banda desenhada através do apoucamento do seu mais prestigiado festival em todo o Mundo. O mencionado Daniel Clowes, Charles Burns, Chris Ware, Riad Sattouf, Joann Sfar ou Milo Manara boicotam o grande prémio. Este último, faz questão de salientar a importância das mulheres na sua vida artística (não!), sempre respeitador do seu papel e não como objectos (eu não ia inventar uma coisa destas). Enfim, este fiasco já valeu a pena só para nos revelar um Manara, afinal, feminista. Desenha umas mulheres magníficas, mas como autor de banda desenhada completo sempre foi medíocre, não faz qualquer falta na lista de nomeados.

Nesta livraria, há quase 25 anos os clientes eram virtualmente todos do sexo masculino. Ninguém barrava a entrada a mulheres, aliás elas entravam com os filhos, com os namorados, com os maridos… e invariavelmente torciam o nariz ao que viam, quando não criticavam abertamente. Essa realidade felizmente tem vindo a mudar, hoje cerca de 40% dos clientes são mulheres, muito por via do mangá, mas ultimamente têm diversificado muito os seus gostos. Significa que a banda desenhada está mais rica, apela também a essa metade da população; a livraria está mais rica e (ainda) melhor frequentada, as mulheres trazem um óptimo ambiente, sempre detestei locais a parecerem “man caves”. Mas, também é um indicador que as mulheres estão menos preconceituosas relativamente a uma arte que — não consideravam para homens —, consideravam para crianças e crianças grandes. Mas, mais importante, não foi o Estado que nos impôs quotas, ou que obrigou as mulheres a ler bd; nem foram os boicotes de associações de “causas”; nem eu disse ao Vasco ou ao Marco que tinham que vender 50% dos livros a mulheres. A porta sempre esteve aberta, entra quem quiser e toda a gente é bem-vinda. Na parte criativa, exibimos virtualmente tudo o que as mulheres produzem de qualidade e a que temos acesso, se não se vende mais é porque os clientes (homens e mulheres) não compram.

Onde eu consigo dar alguma razão aos protestos, mas nunca ao ponto de armar esta mise-en-scène é que a lista tem 30 nomes e de facto não tem nenhuma mulher. Não acho grave e acharia ainda menos se: olhando mais de perto, nos trinta não estivessem nomes que obviamente não têm qualquer categoria para lá estar e de facto estão por razões alheias à banda desenhada. Riad Sattouf por exemplo, de origem síria. Tem 37 anos, uns parcos 10 anos de carreira se tanto… já dá direito a nomeação para o grande prémio de Angoulême? Então sim, dou alguma razão aos protestantes, a Marjane Satrapi tem obra bem mais significativa (e é iraniana, tem de contar para alguma coisa), só é pena que dois erros nunca tenham dado uma coisa certa.

Se acharem que estou errado, respondam nos comentários juntamente com uma pequena lista de mulheres que deviam estar nomeadas, mas lembrem-se que concorrem contra autores como Richard Corben, Hermann, Lorenzo Mattotti, Nicolas de Crécy, Stan Lee, Alan Moore, Frank Miller, Cosey, Jirô Taniguchi, Naoki Urasawa ou Jean Van Hamme. Que ganhe o — ou a — melhor.

Hipertexto #51

Matt Madden sobre Charlie Hebdo
A perspectiva de um autor americano a viver em França.

Robert Crumb sobre Charlie Hebdo
Outro autor americano a viver em França (há muitos anos). New York Observer.

Os acontecimento na Charlie Hebdo provocaram um debate entre autores
Onde alguns vêem liberdade de expressão, outros vêem radicalismo xenófobo. Mas uma coisa parece não ser passível de opinião, porque é um facto: Uma ofensa é uma ofensa, um atentado e ser assassinado é diferente. New York Times.

Uderzo voltou para um tributo à Charlie Hebdo
The Daily Mail.