Is That All There Is?

Is that all there is?

Argumento e desenho de Joost Swarte. Fantagraphics, 2012.

Tenho relido o Tintin nos últimos anos porque editei o Papá em África (MMMNNNRRRG; 2014) de Anton Kannemayer, porque tive acesso ao Tintin Akei Kongo (edição anónima) e porque estou a despachar a minha colecção para o “meu sobrinho” de nove anos que precisa de ler BD – claro que meti no ecoponto o “África” e o “América”, não ia dar ao miúdo aquele lixo mental! Relendo a obra toda percebe-se como a série vai evoluindo em todos os sentidos, incluindo o crescimento humanista de Hergé, de puto estúpido a um cidadão do mundo. Seja como for, até ao País do Ouro Negro as aventuras do “repórter de poupinha” são uma parvoíce pegada de situações “non-stop” de folhetim para crianças. Como o MacGyver, é só inventar tretas, pistolas que encravam e passam mil vezes de mão inimiga para mão traidora para um maneta, um copo-casca-de-banana para um gajo malhar e partir-se todo, mais uma perseguição de carros, motas e hidroaviões, etc, etc…

Is that all there is?

Is that all there is?

Quando se fala nos autores de BD de “linha clara” em que Hergé é a grande referência – termo este que o holandês Joost Swarte cunhou para o tipo de grafismo de BDs que utiliza linhas fortes que têm a mesma espessura e importância, em vez de ser usado para enfatizar determinados objetos ou ser utilizada para sombreamento – é realmente referido exclusivamente para a questão gráfica. Sei que que posso estar a ser redundante ao escrever isto, afinal “linha” diz que só se pode incluir desenho. Ainda assim, raramente se discute o tipo de narrativa ou de conteúdos temáticos que se vincula à “linha clara”. Não é uma surpresa de alguma forma porque geralmente o desenhador ultrapassa o argumentista quando se fala vulgarmente de BD – embora com a moda da “novela gráfica” se tenham invertido esses papéis.

Podemos juntar o holandês a um grupo de autores que renovaram a “linha clara” nos anos 70 e 80, como os franco-belgas Yves Chaland, Ted Benoit, Serge Clerc e Floc’h mas também Theo van den Boogaard (outro holandês), o espanhol Daniel Torres e até o “nosso” Luís Louro. Mas tal como o último escabroso álbum para comemorar os 30 anos da série Jim del Monaco, a maior parte destes artistas fazem a manutenção dos pecadilhos da BD com a sua insistência irritante no uso de elementos nostálgicos de outros tempos mais “dourados” – dos tempos das colónias e dos seus ignorantes “conguitos” com lábios de salsicha, das aventuras exóticas pelo mundo ainda por cartografar, da inocência e surpresa da descoberta de novas tecnologias sejam elas para conquistas espaciais como para aplicação quotidiana, o regabofe das corridas, velocidade e skyscrapers, etc… É muito estranho o conteúdo da “linha clara” que recorre sempre à nostalgia e à infância inocente das BDs dos outros tempos.

A “linha clara” parece ter um propósito programático, o “retro”. Ainda mais estranho isto se considerarmos a expansão e a euforia económica dos anos 80, pois como se sabe o “mercado da nostalgia” depende do mal-estar do presente. Estes autores queriam “ainda mais e melhor” do que a década de 80 lhes ofereceu? Swarte não sai muito desta linha de pensamento, mesmo que ele tenha feito parte dos Provos – movimento de contestação dos anos 60 – mas foi de certeza menos militante que o seu conterrâneo Willem – já agora, é de notar que ambos fazem a BD “Enslaved by the Needle!” (1973) com Willem como argumentista e que se encontra neste livro. Sei que Swarte fez algumas BDs políticas nos inícios dos anos 70, altura aliás, quando começa a sua carreira como autor, editor e divulgador de BD trabalhando com a Real Free Press, uma editora e loja de BD que sobrevivia graças ao narcotráfico… man, those were the days!

Nesta compilação, verdadeiro ”cartão de visita”, a sua obra parece-me pouco convincente no que quer transmitir do seu foro intimo ou de teor político, embora não seja nitidamente um nostálgico à procura da zona de conforto da infância feliz – ah, as tardes preguiçosas que que se lia as novas “aventuras do Zonzon & Rififi na Micronésia” – pois até introduz elementos de sexo e violência (vindos da estética underground dos anos 60/70) sobretudo em narrativas que decorrem no caos das grandes urbes. Talvez a sua maior crítica seja a alienação mental da sociedade mas a tónica sabe a pouco.

Lê-lo (hoje?) parece ser um acto pueril, tal como ir ressacado a um museu de arte contemporânea no Domingo de manhã, em que por mais esforço intelectual que seja feito, o produtor e o receptor não se entendem… mas sim, é muito giro ver a instalação no chão, ler a folha de sala pelo sim pelo não, não vá passar ao lado a intenção do artista. Depois da bica, uma olhadela na livraria do museu, metemo-nos no carro e esquecemos o que vimos… É óbvio que Swarte destaca-se pela espetacularidade do grafismo e “design”, tanto que ele tem feito desde selos a edifícios na sua carreira profissional e artística, trazendo à baila a máxima “the medium is the message”. Olhar para um desenho seu é descascar detalhes cómicos ou irónicos como a capa do segundo número da revista Raw (1980) também aqui republicada. É uma delícia observar vinhetas ou imagens cheias de detalhes e construções extravagantes mas sobretudo a orgia de “slapstick” e “screwball” com saltos à globetrotter. E depois disso o que acontece? Is that all there is? é um título infelizmente mais irónico do que gostaria de ser.

Para quem não pratica a francofonia, o antigo “número 2” da Fantagraphics, Kim Thompson (1956-2013), deu à estampa em língua franca para a Aldeia Global uma boa selecção de BDs e algumas ilustrações produzidas entre 1972 e 2010 para várias revistas e livros. Um gesto editorial de salutar embora o livro poderia ser melhor: podia ter uma capa dura para não termos um “peixe morto” na mão, podia ter um formato maior para não ter algumas BDs deitadas, ter a ordem dos trabalhos alinhada cronologicamente para se perceber a evolução do autor, ter mais textos de apoio – o do Chris Ware é bom mas não chega – para quem não vá conseguir distinguir um trabalho pessoal de uma encomenda institucional como “The Rubber Paradise” que saiu no álbum Les aventures du latex: La bande dessinée européenne s’empare du préservatif (1991), curiosamente a BD mais genuinamente divertida desta compilação da “Fanta”.

Por fim, lembro que este autor em Portugal só existe como ilustrador do provocador e belíssimo livro O papalagui : discursos de Tuiavii, chefe de tribo de Tiavéa nos mares do Sul (Antígona, 1988). O que é estranho, um livro que já teve várias reedições ao longo de três décadas nunca se publicou um livro a solo de Swarte. Será porque Swarte fez BD a pedir o boicote ao café angolano (como forma de pressionar o fim das guerra nas colónias) em 1973, que ninguém o liga? Os portugueses toscos não o perdoaram? Claro que não é isso! É só ignorância visual que este país sofre, pá, afinal as primeiras edições nacionais do Papalagui nem as ilustrações tinha… Talvez para poupar uns trocos e para além disso, os nossos editores literários sempre tiveram a infeliz postura do “ter bonecada para quê?”

4 comments

  1. José Rui says:

    O Ecoponto é o equivalente moderno a queimar livros? Acho que não deves queimar livros, deves dar todos ao teu sobrinho.
    Não sei se os clássicos gregos passavam no teu esmiuçado sentido do que não é lixo mental, porque de facto os tempos eram outros na Grécia antiga — não confundir com a moderna. E filmes? Aqueles filmes “noir” que eu adoro, devemos meter no ecoponto porque de vez em quando o Humphrey Bogart lança a mão em direcção à cara de uma daquelas mulheres problemáticas que o rodeiam? Acho que vou conservar os meus e não vou negar metade (ou deverei dizer quase toda?) a história da humanidade — que em bom rigor, nem me interessa como grupo.
    Gosto deste livro, o Joost Swarte tem imensa piada.

  2. Mao says:

    Marcos: o livro do Kannemayer começa precisamente por defender a leitura (acompanhada?) do Tintin no Congo, como documento do racismo, etc. Hahaha 😛 Mas compreendo o uso metafórico do ecoponto.

  3. Marcos Farrajota says:

    na realidade vendi a 1 euro esses dois álbuns do Tintin, há sempre um cromo que os quer sabe-se lá porquê – é que nem é pelo racismo, são apenas maus artísticamente…
    mas pelos vistos escrever coisas destas dá direito a comentários e chamar a atenção. good!

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