Categoria: Banda Desenhada

Secret Wars

Secret Wars
Alex Ross.

Argumento Jonathan Hickman, desenho Esad Ribic. Marvel, 2016.

Na adaptação de um superherói ao cinema, Superman (1979) ou Batman (1989) tornaram-se exemplares. Como se diz na gíria, tinham a hook and a look, fizeram muito dinheiro, e tornaram-se parte da cultura popular. Como sabemos pelas suas sequelas, a maturação de uma propriedade fílmica de superheróis é outra história.

Para a saga dos X-Men, agora no sexto filme (descontando derivados), a 20th Century Fox experimentou uma receita original para se actualizar de modo credível. Numa primeira trilogia, adaptou-se conforme o ar do tempo, com muito cabedal. Numa segunda fase, a chamada prequela, os filmes tornaram-se de época, acompanhando as histórias da bd à medida do período em que debutaram. As duas trilogias foram articuladas para formar um contínuo: em First Class (2011), Jennifer Lawrence apenas sonhava que era Rebecca Romjin, mas em Days of Future Past (2014) os actores dos primeiros filmes aparecem como versões futuristas dos seus sucessores, repartindo tempo de antena. Em Apocalypse estaremos nos anos 80, haverá impermeável amarelo, mohawk, e aquela ninja asiática do Jim Lee, estilo Conta-me como Foi, “baza dar um giro por todos os lugares onde foste feliz”.

A expansão de sagas em trilogias, remakes, e rebootscongruentes merece novo cuidado na era do Marvel Cinematic Universe. Depois de várias tentativas falhadas, que puseram as propriedades fílmicas mais valiosas em mãos alheias, o projecto arriscado de Kevin Feige, que meteu todas as fichas no autofinanciamento de Iron Man (2008), tornou-se uma máquina de fazer blockbusters. A continuidade desse projecto, bem como de outras narrativas transmédia semelhantes, depende de uma sinergia produtiva entre filmes, com subplots saltitantes, cenas pós-créditos, e desdobramentos televisivos. Com duas dezenas de filmes de superheróis previstas para a próxima década, a ameaça é a saturação, e a oportunidade é a diversificação da oferta.

O caso da colega da Marvel na Disney, a Lucasfilm, serve de aviso. Na preparação de The Force Awakens (2015) começou-se por atirar para o lixo anos de histórias derivadas, uma continuidade barroca chamada “Holocron” com vários níveis de pertinência. Claro, basta recomendar a alguém A Caravana da Coragem ou o Especial de Natal de Star Wars para se ter a prova do que José Gil chama a “não inscrição”. Nunca houve pressa de fazer o blu-ray dessas memórias, e na trilogia “original”, a correcção cosmética foi de tal modo patológica que só graças a um grande maluquinho temos acesso à reconstituição mais fiel do filme de 79, a versão Despecialized.

Secret Wars

Secret Wars

Nos superheróis há uma tradição de mergers and acquisitions a incitar, desde muito cedo, a bons truques de ilusionismo. Um caso recente é o de Angela. A personagem foi criada por Neil Gaiman em 1993, para o Spawn de Todd McFarlane, mas uma questão judicial de direitos acabou por opor os dois autores. Através de uma troca de favores com Gaiman, a Marvel conseguiu apropriar-se da personagem, e através de Age of Ultron (2013) introduziu-a no seu universo, onde é agora irmã de Thor e consorte dos Guardians of the Galaxy. O crossover é instrumento preferencial desta magia. Na variante mais modesta, é semana de moda, com fatos novos para todos; na mais pesada, é cirurgia mitológica de coração aberto.

Se em 1985, no primeiro Secret War, a Marvel cozinhava um evento à medida dos brinquedos da Mattel, com heróis magicamente transportados para um planeta alienígena (uma versão rudimentar dos Hunger Games), a concorrência já estava um passo à frente, e o gongórico Crisis of the Infinite Earths refazia o multiverso da cabeça aos pés. Devemos a Crisis a noção meta-narrativa da vinheta que se desfaz no branco. Em Infinite Crisis (sequela de 2003), a barreira da realidade é mesmo refeita a soco por um Superboy mimado!

O novo Secret Wars também tem uma agenda, embora bem disfarçada, com mitemas sofisticados. Pretende-se a eutanásia da linha Ultimate, guardando os seus aspectos mais reconhecíveis, o que começara com Original Sin (2014), uma maquinação para encostar às boxes Nick Fury, que a população em geral não vê como branco. Em paralelo, a retaliação que a Marvel exerce perante a Fox, por arruinar a face fílmica de Fantastic Four, atinge novas proporções, aspecto que certamente dará algum gozo ao seu último escritor de qualidade, Jonathan Hickman, que tem utilizado a equipa como cavalo de Tróia para desconstruir o universo Marvel: Secret Wars gira em torno da família original, mas esta está irreconhecível.

Nos meses que antecedem Secret Wars, os peões preparam-se para um colapso cósmico, que não conseguem evitar. Tal como na série de 85, emerge então um Battleworld, mas agora é um domínio feudal vicário, composto de todas as multitudes do universo Marvel, onde Dr. Doom é rei. Reed Richards fracassa, e é obrigado a reconhecê-lo perante o seu nemésis (“nós salvámo-nos a nós, mas tu salvaste isto tudo”), o que toca numa questão ontológica do universo Marvel: deve um prometeus transformar-se no demiurgo? E se tiver mesmo de ser?

À semelhança de Convergence, da DC Comics, SW é pretexto de múltiplas recombinações de histórias passadas, em mini-séries especiais que lembram Toy Story: enquanto não estamos de olhos neles, os brinquedos mudam de chapéus e divertem-se à brava. O sucesso deste fan service face ao da concorrência explica-se por um terceiro pólo, a Image Comics. Formada nos anos 90 como alternativa aos dois gigantes, tornou-se a melhor forma de suplementar os seus quadros. A DC tomou-lhe os piores tarefeiros dos primeiros tempos, como o pessoal da Top Cow Studios, mas a Marvel apanhou-lhe o sangue fresco.

Sernerd de tudo isto tornou-se uma carreira de sucesso. Não esqueçamos que E. L. James fez fortuna escrevendo fan fic de Twilight. Como dizia Grant Morrison, quem não gosta do que lê pode cobrir os balões de corrector e escrever por cima, ou ir ler as obras antigas. Mas mesmo sobre essas, nada está escrito na pedra. O conservador T. S. Eliot lembrava-nos que cada obra nova reconstitui o cânone inteiro que a precede. Estava a falar de superheróis?

Sugestões #70

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Mais vale tarde que nunca, de volta com mais sugestões para encomendar. Aproveitem para passar na livraria, pois temos muitas novidades disponíveis.

Marvel para assinatura

Civil War II #0 (de 6)

Por Brian Michael Bendis e Olivier Coipel. Eis o mais recente e explosivo evento da Marvel. Neste número serão introduzidos os personagens e a causa que os vai lançar num confronto que irá afectar o universo Marvel nos próximos tempos.

Captain America: Steve Rogers #1

Por Nick Spencer e Jesus Saiz. O Captain America original está de volta, com um novo escudo, uma nova equipa e uma nova missão. Mas não é só Steve Rogers que está de volta. Como diz a expressão, corta-se uma cabeça, e duas nascerão no seu lugar. A Hydra está de volta!

Daredevil/Punisher #1 (de 4)

Por Charles Soule e Szymon Kudranski. Uma simples mudança num dos casos de Matt Murdock, torna-se mais complicado quando o Punisher tenta matar o seu cliente. Se Daredevil e Blindspot querem levar este criminoso ao tribunal, vai ser necessária usar toda a argúcia disponível. Ao Punisher basta apenas uma bala. Que a batalha comece!

Dark Horse

Wandering Island

Por Kenji Tsuruta. Mikura Amelia é uma jovem que vive sozinha com o seu gato e trabalha num serviço aéreo de entregas, voando no seu clássico hidroavião entre as pequenas comunidades japonesas que se encontram espalhadas por centenas de quilómetros no Pacifico. Quando o seu adorado avô morre, ela descobre uma encomenda por entregar, com o endereço para uma ilha que não existe, ou será que existe? Para responder a esta pergunta Mikura voa em busca da verdade escondida sobre a Wandering Island!

Dark Horse para assinatura

Mae #1

Por Gene Ha. Quando ela era uma criança, Abbie descobriu um portal para um mundo de fantasia. E durante alguns anos teve grandes aventuras e era considerada uma celebridade heróica. Mas quando fez vinte e um tudo foi-se abaixo e ela decidiu voltar para casa. A sua irmã Mae, não tinha ideia do que tinha acontecido a Abbie todo este tempo. Isto é, até ao dia em que monstros e outras criaturas começam aparecer no nosso mundo.

Image para assinatura

Renato Jones: The One % #1

Por Kaare Andrews. Metade da riqueza do mundo é detida por um por cento da população. Eles destruíram economias, compraram governos, e juntaram mais poder que qualquer outro grupo na historia. E ainda não têm o suficiente. Com este tipo de poder como é que alguém os poderá fazer pagar pelo o que fizeram? Entra Renato Jones, um misterioso vigilante, para equilibrar as contas!

3 Floyds: Alpha King #1 (de 5)

Por Nick Floyd, Brian Azzarello, Simon Bisley e Ryan Brown. A historia passa-se num subúrbio muito longe daqui, em Munster, Indiana, onde Brewer e CiCi produzem uma bejeca tão distinta, que atrai um rei monstruoso e o seus servos horrendos de outra dimensão. As espadas entram em acção, linhas ultrapassadas e cercos lançados para a subida do Alpha King!

Avatar

Cinema Purgatorio #1

Por Alan Moore, Kevin O’Neil e companhia. Bem vindo ao Cinema Purgatorio, um antologia mensal, com vários contos todos a preto e branco, para permitir a pureza das visões de cada ilustrador, com alguns dos melhores escritores da actualidade envolvidos no projecto. A não perder.

Boom! Studios

Black Dahlia HC

Por James Elroy, David Fincher, Matz e Miles Hyman. Os detectives da LAPD, Bucky Bleichert e Lee Blanchard encontram-se no misterioso e brutal homicídio de Elizabeth Short, uma jovem bela mulher. A sua obsessão leva-os para um caminho negro à medida que descobrem os podres de Hollywood e o passado distorcido e tortuoso da vitima. Este caso vai testar a sua sanidade.

Conundrum Press

Paul UP North

Por Michael Rabagliatti. A acção passa-se entre 1975 e 1976, antes e durante os Jogos Olímpicos de Montreal. Onde a ginasta Nadia Comaneci fez furor. Paul tem agora 16 anos, um adolescente, que descobre novas experiências, muda de escola, anda à boleia, apaixona-se, leva um corte, fuma erva e bebe cerveja. Tudo isto acompanhado duma banda sonora de Peter Frampton.

IDW para assinatura

Archangel #1 (de 5)

Por William Gibson e Butch Guice. William Gibson, o génio responsável pelo livro Neuromancer, vira-se agora para os comics. Os líderes políticos dos EUA em 2016, abandonam o planeta radioactivo que destruíram e tomam conta do poder da última esperança de humanidade: A colossal máquina chamada Splitter, capaz de criar uma nova realidade para eles se infiltrarem e corromper.

Os (quase) inqualificáveis Guardians of the Galaxy

Guardians of the Galaxy

Com muitos anos como leitor de BD – quase tantos quantos tenho de vida – já vi – e li – as mais surpreendentes – e (quase) inqualificáveis – propostas, das mais variadas proveniências. Guardians of the Galaxy é um dos exemplos mais recentes.

Guardians of the Galaxy

Exemplo recente, entenda-se, em termos de leitura pessoal, pois o conceito dos Guardians of the Galaxy e os seus protagonistas – apesar de muitos o desconhecerem – foram criados em 1969, por Arnold Drake ((Arnold Drake (1924-2007), argumentista norte-americano que trabalhou para a DC Comics e a Marvel, em especial nas décadas de 1960 e 1970.

Na primeira, foi co-criador de Doom Patrol (em 1963, com Bruno Premiani e Murray Boltinoff), tendo escrito histórias de Batman e Plastic Man, e participado nas revistas The Adventures of Bob Hope, The Adventures of Jerry Lewis ou House of Mistery, entre muitas outras.

Na Marvel, para além de ter criado Deadman (em 1967, com Carmine Infantino), teve passagens pelo Captain Marvel e pelos X-Men.)) e Gene Colan ((Eugene Jules Colan (1926-2011), desenhador norte-americano que tem no currículo dezenas de histórias para a DC Comics e a Marvel.

Com passagem pelos maiores super-heróis das duas editoras, os seus trabalhos mais marcantes foram Daredevil (entre 1966 e 1979), Howard The Duck (1976-1979) e The Tomb of Dracula (1972-1979). Foi igualmente co-criador de Falcon (com Stan Lee, em 1969), futuro parceiro do Captain América e na época o primeiro super-herói afro-americano.)).

A estreia aconteceu em Marvel Super-Heroes #18 ((Em Janeiro de 1969.)). Na altura a acção situava-se no século XXXI, um futuro longínquo da terra 691, uma linha narrativa alternativa da Marvel, e os Guardians of the Galaxy originais uniam-se para combaterem a irmandade Badoon, uma raça extraterrestre que queria conquistar os planetas do sistema solar.

Os seus membros eram o major Vance Astro (ou Major Victory), um astronauta do século XX que tinha estado em animação suspensa, Martinex T’Naga, um ser cristalino do planeta Pluto, Captain Charlie-27, soldado de Júpiter, Youndu Odonta, uma selvagem nobre azul de Centauri-IV, todos exemplares únicos das respectivas raças. Starhawk, Aleta e Nikki uniram-se aos guardiões durante os primeiros confrontos, mas a verdade é que as aparições esporádicas do grupo ao longo dos anos seguintes, até final da década de 1970, mesmo em revistas como Thor ou The Avengers, não conseguiram impô-los junto dos leitores, pelo que não surpreende que não haja grande memória deles.

No início de 1990 foi ensaiado um regresso do grupo, em título próprio, então escrito e desenhado por Jim Valentino ((Jim Valentino (1952-), argumentista e desenhador norte-americano, entrou no mundo dos quadradinhos na década de 1970, com comic autobiográficos, iniciando um percurso com passagens pela revista Cerebrus (de David Sim), onde publicou Normalmen, e pela Renegade Press, antes de integrar a Marvel Comics, de onde sairia em 1992 para se tornar um dos fundadores da Image Comics.)), que seria substituído por Michael Gallagher ((O norte-americano Michael Gallagher, para além dos Guardians of the Galaxy, escreveu histórias da linha What If?, tendo igualmente trabalhado em edições de Alf, Sonic e na revista MAD.)), a partir do #29, que ficaria responsável pela revista até ao seu encerramento, após 62 edições.

Fechado este breve resumo da ‘pré-História’ dos Guardians of the Galaxy, entramos no presente e no grupo que hoje – um momento que poderá ser breve e efémero como todos sabemos – é um dos mais populares e (re)conhecidos da Marvel.

Guardians of the Galaxy

O princípio de um grupo de heróis cósmicos – de que todos certamente conseguiríamos citar outros exemplos – foi retomado por Dan Abnett ((Dan Abnett (1965-), argumentista britânico escreveu histórias de Doctor Who e para a revista 2000 A.D. (Vector 13 e Sinister Dexter, entre muitos outros), antes de ir para os Estados Unidos onde assinou para a Marvel, relatos de Punisher ou a saga Annihilation.

Trabalhou igualmente em diversos títulos da DC Comics e da Wildstorm.)) e Andy Lanning ((Andy Lanning, argumentista e desenhador, igualmente britânico tal como Dan Abnett, fez com ele boa parte do seu percurso, tendo em comum títulos como Punisher, Nova, Batman ou Star Trek: Voyager.))  em 2008, com a composição que agora conhecemos: Peter Quill, o filho do senhor das estrelas, Gamora, filha adoptiva de Thanos e a mais letal assassina conhecida, Drax, um criminoso hiperviolento cego pelo desejo de vingança, Rocket Raccoon, um guaxinim antropomórfico caçador de recompensas e a árvore humanóide Groot, e ainda Adam Warlock, Phyla-Vell e Mantis.

Uma combinação altamente improvável, de que Abnett e Lanning tiraram pouco partido – digo eu – numa série de narrativas pesadas e até confusas, que certamente me teriam afastado em definitivo de novas leituras, se fosse nelas que eu me tivesse iniciado nas sagas dos Guardians of the Galaxy.

Mas não foi; conheci-os na sua fase mais recente, na abordagem de Brian Michael Bendis ((Brian Michael Bendis (1967-) Argumentista norte-americano que se destacou com Jinx, Sam and Twitch ou Powers, para a Image Comics.

Actualmente na Marvel, já passou de forma marcante e quase sempre memorável por praticamente todos os grandes títulos da editora, num percurso que se iniciou com Ultimate Spider-Man (2000).)), bem diferente e com muito mais humor e acção, ingredientes com os quais conseguiu tirar maior partido do cocktail imaginado por Abnett e Lanning.

A sua transferência para o nosso tempo, uma das opções acertadas daquela dupla, permite a sua interacção com algumas das franquias actualmente mais populares da Marvel – Avengers, Ângela… – e assim potenciar a sua mediatização.

Depois, combinou nas doses certas as qualidades (?) e características de cada um dos integrantes do grupo: inteligência, sensualidade, força bruta, humor e… decoração vegetal (?!). Dessa forma, os relatos dinâmicos, plenos de acção, com combates épicos e situações extremas são recorrentemente pontuados pelo humor mordaz, certeiro – e às vezes mesmo brejeiro – de Rocket Raccoon, pelo tom monocórdico da única frase que Groot profere – I am Groot… – pelas hormonas em ebulição de Peter Quill e Gamora – mesmo que possam buscar outros parceiros pontuais -, contributos que servem para aligeirar e ao mesmo tempo expandir o tom da série – o que claramente faltava na versão de 2008.

Dessa forma, transformou os Guardians of the Galaxy como que numa família disfuncional, composta por desajustados cósmicos que, apesar de todas as diferenças, choques, empatia ou falta dela e conflitos, conseguem levar a bom termos as sucessivas missões em que devem salvar o mundo., com uma proximidade – já por muitos assinalada – ao modelo – deixem-me chamar assim – que fez boa parte do êxito das duas trilogias cinematográficas de Star Wars. Este modelo, transposto também para o filme que estreou no Verão passado – uma aposta de algum risco mas plenamente ganha – justifica igualmente o sucesso por ele alcançado e as notícias de uma nova película em 2017, uma previsível participação em The Avengers 3 e o desenvolvimento de uma versão animada, em fase de pré-produção.

Voltando à banda desenhada, uma nota final para a escolha criteriosa dos sucessivos desenhadores que têm acompanhado Bendis, com destaque para o inicial Steve McNiven e, depois, para os diversos comics desenhados pela revelação Sara Pichelli, não cometendo a injustiça de esquecer a uniformidade conferida pelo excelente colorido de Justin Ponsor.

Comecei este texto dizendo que já vi – e li – as mais surpreendentes – e (quase) inqualificáveis – propostas, das mais variadas proveniências e que Guardians of the Galaxy é um dos exemplos mais recentes.

Quero concluir afirmando que – mais de uma vez – comprovei que é possível ser estimulado e surpreendido com conceitos que – à partida – parecem aberrantes e (quase) inqualificáveis. Foi o caso de Guardians of the Galaxy.

Guardians of the Galaxy

Spawn of Mars and Other Stories

Spawn of Mars

Argumento e desenho de Wallace Wood. Fantagraphics, 2015.

Alguma coisa deve ter corrido mal: o futuro a que chegámos não é o futuro que nos prometeram. Desconfio que isto já é conversa antiga para quem está a ler, mas o regresso do Marty McFly a 2015 pôs a Internet em revolta. Acordámos dia 21 de Outubro, olhámos pela janela fora e constatámos que não existem carros flutuantes, hoverboards nas ruas ou roupa que se ajusta a qualquer tamanho. Fomos tomados por uma euforia com contornos vagamente dissociativos, entre a nostalgia por um imaginário passado e a expectativa de um futuro que entretanto chegou (desculpem-me o silenciamento estratégico de quem não passou por esta experiência).
Tendo em conta os hábitos de Hollywood, é surpreendente que ainda não tenha surgido uma nova versão do Back to the Future para capitalizar o hype. Mas como é que se faz futurismo em 2015? Julgando pelo recente The Martian, não se faz. Em vez do futuro e do Michael J. Fox, teríamos o Michael Cera com tatuagens a sonhar com a cultura pop dos anos 80. Como poderia ser orquestrado este golpe? Ou seja, que acontecimentos resultariam na criação de uma realidade paralela, em que o futuro é aborrecido? Olhando para o nosso mundo, podemos correlacionar o nosso extravio temporal e a estranha realidade em que vivemos com agentes históricos que não foram contemplados pelo Back to the Future II.
O antropólogo David Graeber sugere, por exemplo, que várias das promessas da ficção científica para o século XXI eram tecnicamente alcançáveis e que só ainda não se cumpriram porque as condições sociopolíticas não o permitiram. No seu lugar, desenvolvemos tecnologias essencialmente burocráticas que reforçam as desigualdades sociais existentes e que em pouco contribuem para o despontar luminoso da civilização intergaláctica. Por outras palavras, ainda não colonizámos Marte porque preferimos criar a iTunes Store. Para um reboot bem sucedido, basta ter isso em conta.

A hipótese de Graeber é apoiada pelas histórias de sci-fi em Spawn of Mars and Other Stories. Nelas abundam naves espaciais e máquinas do tempo, sem que apareça um único smartphone. Este volume pertence a uma série dedicada a clássicos da editora EC Comics, mais conhecida por chocar e atrair as atenções da classe média americana dos anos 50 para os perigos da banda desenhada. Spawn of Mars… é relativamente moderado no shock value. Dedica-se a comics de sci-fi ilustrados por Wallace Wood, escritos maioritariamente por William M. Gaines e Al Feldstein para as revistas Weird Science e Weird Fantasy.
As personagens desta colecção deparam-se com problemas próximos dos nossos, como o esgotamento dos recursos naturais, a guerra e a sobrepopulação. A exploração espacial é geralmente a resposta encontrada para estes desafios, pelo que Spawn of Mars… não apresenta soluções particularmente inventivas (admito que quaisquer outras hipóteses parecerão supérfluas se pudermos simplesmente fugir do planeta Terra).

Spawn of Mars

Spawn of Mars

O avanço tecnológico destes futuros paralelos parece, portanto, ter divergido do nosso a determinado momento. Como consequência, os conceitos explorados nestas histórias parecem mais desadequados do que propriamente antiquados. Podemos dizer que os cenários altamente especulativos e por vezes patetas de Spawn of Mars… — que incluem cientistas a trabalhar na cave, andróides militares emprestados para fins domésticos e mulheres engravidadas por extraterrestres —, funcionam numa lógica de suspensão das regras que desafiam o senso comum e promovem o pensamento lateral. Neste sentido, o recurso frequente a retóricas pseudocientíficas não é (só) um defeito, mas também uma necessidade quando se querem criar situações altamente improváveis.
Este efeito é apontável, por exemplo, em Transformation Completed. Nesta história de seis páginas, um soro experimental permite a transição total entre o sexo masculino e o feminino, e vice-versa. No cenário proposto, a determinação biológica da identidade e orientação sexuais é, ao mesmo tempo, absoluta e completamente fluida: alguém com uma anatomia e identidade masculinas que é sujeito a este tratamento, transformar-se-á física e psicologicamente numa mulher. Deste modo, as características identitárias são contingentes a condições biológicas que são elas próprias transitórias, colocando a questão transgender de pernas para o ar (de forma certamente problemática, mas por isso mesmo interessante).
Há outros conceitos que são explorados, como o amor inter-espécies (nas histórias Spawn of Mars e The Maidens Cried), as consequências práticas da imortalidade (The Two-Century Journey), paradoxos temporais e os perigos de tecnologias como a teleportação ou a mais corriqueira energia nuclear. A maioria das histórias recorre a twists e inversões de posição que obrigam o leitor a confrontar-se com o seu próprio reflexo, mas que são mais ou menos previsíveis para uma audiência actual (“afinal, éramos nós os extraterrestres,” “estamos para os extraterrestres como o gado está para nós”, etc.; talvez já fossem previsíveis quando foram publicadas?).

Como conjunto de ficções especulativas, Spawn of Mars… é uma curiosidade histórica e uma panorâmica sobre futuros que se tornaram tangentes do passado. Como conjunto de obras de banda desenhada, representa uma amostra do trabalho do artista Wallace Wood e é por aí que o seu interesse se eleva. Como era comum nos comics da época, cada história inicia-se com uma grande vinheta titular. Wood usa-as para estabelecer a atmosfera geral da história e exibir a extensão das suas capacidades técnicas. Muitas destas vinhetas poderiam até existir como ilustrações autónomas ou posters, cheios de pormenores da tecnologia, da fauna e da flora extraterrestres que convidam à exploração pelo olhar. A expressividade com que Wood representa estes pormenores em tinta da china e screentones—os reflexos e brilhos do metal que dão volume às naves espaciais e as formas tortuosas da vida alienígena que fazem lembrar, por razões certamente genealógicas, as criaturas abjectas de Chris Weston em The Filth — são o segredo do negócio e poderiam também ganhar autonomia para lá das histórias em que aparecem. Se retirássemos a trama e os personagens e reduzíssemos tudo a imagens, poderíamos chegar a uma sci-fi superficial em que o grafismo seria um fim em si mesmo, de forma semelhante ao que vemos em autores contemporâneos como Yuichi Yokoyama ou Léo Quievreux.
A vontade de extrair as imagens do seu contexto é exacerbada pelo design das páginas que, numa primeira análise, sofrem com uma negociação pouco cuidada entre imagens e texto. As histórias recorrem demasiado a descrições verbais maçudas e o texto acaba por controlar o espaço da página. Por consequência, as imagens ajustam-se de forma grosseira a grandes blocos de texto expositivo ou a balões de fala encavalitados. Neste sentido, não foge à norma da maioria dos comics seus contemporâneos. Mas estou disposto a dar o benefício da dúvida e argumentar que esta submissão da imagem ao texto poderá conferir um valor estético específico aos comics desta era, que merece ser reapreciado. Talvez este tipo de relação entre imagem e texto possa ser recuperado em experiências futuras de banda desenhada. É um morto por ter cão e morto por não ter, mas na positiva.

Spawn of Mars… reflecte uma cultura popular mais investida numa ideia do futuro do que a nossa. No entanto, este livro não servirá como referência do futuro (afinal, o futuro, para nós, já chegou). Para mim, servirá de referência para o futuro: um registo do que poderá ser e do que poderia ter sido.