Neste momento, entre principais editoras de comics, a Marvel é uma das mais inovadoras, tanto nos conceitos que apresenta, como no arrojo visual das suas histórias. A iniciativa Marvel Now!, além de em 2013 ter sido um sucesso comercial que permitiu à editora competir com a medíocre mas mediática iniciativa New 52 da DC Comics, a sua eterna concorrente, deu verdadeira liberdade criativa a diversas equipas de autores que, com a produção regular de trabalhos de qualidade, conseguiram a difícil tarefa — já lá vão 75 anos* de publicação ininterrupta — de renovar ou reafirmar a direcção de alguns personagens já históricos, de onde destaco: Captain América de Rick Remender e John Romita Jr., Winter Soldier de Jason Latour e Nic Klein; Thor: God of Thunder de Jason Aaron e Esad Ribic, Uncanny Avengers de Remender e John Cassaday, Thanos Rising de Aaron e Simone Bianchi e o surpreendente FF de Matt Fraction e Mike Allred.
Neste contexto, a All New Marvel Now! é um grande passo em frente na intenção da histórica editora em produzir comics com temáticas variadas e para públicos diferenciados, algo que não se via em tão larga escala desde a seminal linha Epic, mas dando agora merecido destaque a personagens maioritariamente fora da tipologia do típico super-herói e em séries a solo, outra das “novas” apostas da editora, já que a ênfase dos últimos anos foi mais nas séries de grupo, em particular os Avengers e X-Men. Das novas séries com heróis solitários, se uns têm sido produzidos com qualidade nos últimos anos, Daredevil e Punisher, outros nem sempre tiveram o seu potencial bem explorado, ou sequer série própria, como Iron Fist, Ghost Rider, Moon Knight ou Silver Surfer.
Mas são três novos títulos protagonizados por personagens femininas que aqui destaco: Black Widow, Ms. Marvel e Elektra, e que preconizam a direcção desta “nova” Marvel mais autoral e que procura replicar o, a partida improvável, sucesso de critica que foi, e é, o galardoado Hawkeye de Matt Fraction e David Aja com a fórmula simples, mas muitas vezes esquecida, de deixar os seus criadores… criarem.
Um dos primeiros títulos foi Black Widow, onde podemos acompanhar o caminho de redenção de Natasha Romanova, uma implacável espiã russa que desertou para os EUA. Criada por Stan Lee, Don Rico e Don Heck em 1964*, em plena Guerra Fria, Black Widow tem um passado negro e algo obscuro – e retroactivamente actualizado, sistema este utilizado ad eternum pela Marvel com diferentes níveis de sucesso ou relevância – e quer agora redimir-se nesta nova série escrita espartanamente por Nathan Edmondson (Punisher) e superiormente desenhada por Phil Noto.
Desde logo a começar pelas capas, Noto canaliza todo o imaginário dos filmes de espionagem dos anos de 1960 e 1970, décadas de ouro para a ilustração americana onde Coby Whitmore, Robert McGinnis, Bob Peak ou Jack Potter pontificavam e são aqui notórias as suas influências gráficas e temáticas, onde algo de etéreo permanece dessa época nas ilustrações de Noto, quer na paleta impressionista das cores, quer nas linhas esquemáticas e simplificadas. As páginas 18 e 19 do segundo número são disto exemplo.
E se, não raras vezes, os perigos vindos do oriente eram a maior preocupação dos agentes secretos clássicos, em Ms. Marvel a personagem principal é Kamala Khan, uma desbocada adolescente a viver em New Jersey, filha de pais imigrantes paquistaneses. Sendo este um típico comic da Marvel onde, entre lutas com supervilões e dilemas familiares, a personagem principal vive na dualidade entre o que os outros esperam dela a as suas próprias aspirações, não deixa de ser bem atípico pelo facto de Kamala ser muçulmana, resultando numa procura de identidade num contexto nada comum nos comics norte americanos.
Os desenhos de Adrian Alphona, num registo mais alternativo que o habitual na Marvel, caracterizam na perfeição toda a diversidade cultural dos vários intervenientes, desde a família e amigos de Kamala até aos seus colegas de escola tipicamente americanos, entre os quais procura integrar-se. No entanto, a argumentista G. Willow Wilson, ela própria convertida ao Islão, faz questão de afirmar que esta série não pretende ser panfletária e que se Kamala questiona a sua fé religiosa, esse é apenas um dos aspectos que formam a complexidade da sua personalidade e motivam-na na procura do equilíbrio entre a sua herança cultural e o facto de ter nascido americana e ser fâ dos Vingadores, em particular de Carol Denvers, a Ms. Marvel original.
Por último, destaco Elektra, a nova série com argumentos de W. Haden Blackman e arte do incrível Michael del Mundo, que logo no primeiro número deixa bem clara a sua intenção: devolver à personagem o lugar de destaque que merece entre as principais personagens da Marvel.
Criada por Frank Miller em 1981, apareceu pela primeira vez no Daredevil nº. 168 como mercenária e ex-namorada de Matt Murdock e, até à sua morte no nº. 181, Miller foi compondo a sua personalidade de forma cada vez mais complexa e ambivalente, continuando esse percurso em Elektra Asssassin com Bill Sienkiewicz e finalizando em Elektra Lives Again, a genial e desvalorizada novela gráfica que escreveu e desenhou em 1990. Desde então sempre faltou um rumo à personagem que de vez em quando emergia em séries alheias ou em títulos próprios mas que em nada valorizavam ou acrescentavam ao que Miller já havia criado.
Entra Blackman e com ele uma escrita directa, sem recuos ou hesitações, que resumindo o passado de Elektra em páginas de extrema beleza desenhadas por Del Mundo e coloridas por Marco D’Alfonso, faz a personagem avançar na procura da sua identidade à muito perdida.
Em resumo: três séries diferentes entre si, mas visualmente marcantes e que procuram inovar, diversificar e consolidar a presença de personagens femininos fortes no universo Marvel.
André Azevedo escreve habitualmente no blogue A Garagem.