Autor: Marcos Farrajota

Hip Hop Family Tree

Argumento e desenho de Ed Piskor. Fantagraphics, 2013-2014.

Hip Hop

Yo Yo Yo, Mais “História de (qualquer coisa) em BD”!

É um trabalho tão “HERCúleo” como a História do Japão esta do Hip Hop porque começou como uma cultura marginal e passou a estar em toda a rádio ou TV. Quem não tem cuidado com a alimentação vai prá aulas de dança Hip Hop no ginásio e as câmaras municipais arranjaram uma fonte de fazer dinheiro com os graffitis (ou street-art que é mais chique) sem mexer uma palha nos problemas urbanos de base. É uma epopeia!

O que Piskor conta é mesmo o início, quando este género de música aparece nos anos 70 e lá vai ele na sua lenta conquista de espaço cultural até 1981 (primeiro volume) e 1983 (segundo volume). Necessário dizer que esta série começou no sítio boingboing.net sendo publicado uma página por um episódio de História, depois passou para papel em formato comic-book (pela Fantagraphics) sendo agora compilado em livros de grande formato, vulgo “álbuns”.

Segundo o autor, o Hip Hop e os “comics-books” de super-heróis partilham características idênticas, o que não concordo porque o Hip Hop é original de uma cultura de rua de populações marginalizadas das “chocolates cities” enquanto os super-heróis tem uma tradição de cultura popular branca para crianças que tinham dinheiro de bolso – algures em Hip Hop Family TreePiskor relata que Lawrence Parker (futuro KRS One) partilhava as mesmas calças com o irmão…

Essas características são dadas numa BD do primeiro volume justificando-se porque Hip Hop Family Tree tem um ar “retro”: as páginas são falso vintage com uma impressão como se fosse feita ainda pelas quatro camadas de cores separadas do offset antigo, alguns casos com desajustes propositados das sobreposições das cores e as vinhetas são colocadas sobre um fundo com textura de papel amarelecido como se fossem de páginas de um “comic-book” com mais de 40 anos. Quando há situações que remetem para o presente, a impressão é brilhante e fluorescente. Admito que a primeira vez que vi alguns destes exemplos aqui descritos pensava que estava perante erros de impressão!

Hip Hop

Hip Hop

Yo! As cenas que as unem: o “comic-book” e o Hip Hop são invenções de Nova Iorque, ambas no início eram marginalizadas (check), ambas passam em ambiente urbanos (seria realmente chato o Homem-Aranha viver na aldeia a lutar o Agricultor Debaixo do Tractor), os super-heróis e rappers podem aparecer em “comics” / discos de outros antes de terem os seus registos a solo, ambos usam alter-egos (Carlton D. Ridenhiour é o Chuck D, mêne!), travam “battles” (excelente!), usam logotipos e ícones, fazem “team-ups” e “crossovers”. É bem divertida estas comparações e tiro o chapéu a Piskor pela “cromice”. Já agora ele esqueceu-se que tal como os rappers do “bling bling”, os super-heróis também tem as suas “bitches”: Louis Lane, Mary Jane, Robin,… Talvez estas parecenças expliquem o fascínio dos rappers em escrever letras com referências a super-heróis, só em Portugal lembro-me dos MatoZoo, Nerve, Stray… ou que Chuck D queria ser um cartoonista desportivo.

Esta série é bastante detalhada nos factos que vão construir o mito do Hip Hop com “aquela” vantagem que a BD tem sobre um livro só de texto que é podermos visualizar todo fluxo da história a desenrolar-se por imagens quando folheamos os álbuns. Tal como numa infografia têm-se uma ideia clara de como as coisas evoluíram entre os agentes estéticos do Hip Hop, pouco a pouco, as narrativas de factos que parecem irrisórios vão-se desenvolver em algo importante: o percurso do riquinho blasé do Rick Rubin pelos meandros do Punk e do Hip Hop até que criar a importante editora Def Jam ou a vida de Chuck D que estudou Design antes de fazer parte desse monstro sonoro chamado Public Enemy…

O Hip Hop é música pós-moderna por excelência, ao contrário do Blues, Jazz e Rock que vêm de raízes rurais na transição para a urbanidade com uma narrativa linear e cronológica, o Hip Hop não, parece ter várias origens. Pelo menos é o que eu acho enquanto português longe do sul do Bronx onde nas “blockparties” e respectivas lutas entre “soundsystems” se criou o Hip Hop tal como o conhecemos. Ainda assim e por ter sido uma música marginalizada em tempos tão recentes (a MTV ao principio recusava-se a passar vídeos de “Rap” – o primeiro foi dos… Blondie!) não é fácil perceber a(s) sua(s) História(s) pararela(s) nem fixar as suas figuras mais emblemáticas até porque muitas vezes elas parecem-se com pessoas que podiam estar a apanhar o metro do Rossio ao contrário do Pop/Rock onde houve muitos Reis Camalões, Lagartos e outros drogados. Até os pseudónimos dos músicos distraem mais do que ajudam a memorizar. Enquanto todos sabem saltar dos Beatles prós Sex Pistols prós Nirvana, aposto que são poucas as pessoas capazes de fazer uma linhagem idêntica, tipo Grandmaster Flash / Run-DMC / Dr. Dre… ou que saibam uma letra seminal do Hip Hop como sabem de certeza cantarolar uma qualquer dos Depeche Mode. Descansem se se sentirem ignorantes, no final de cada volume há uma lista fantástica de músicas seminais para por o youtube a bombar som nos próximos dias! Blacklicious!!!

A (possível) falta de centro das origens do Hip Hop é no entanto ignorada por Piskor que não refere as festas reggae e os “disco-mobiles” da Jamaica dos anos 60 que inventaram o “toasting” e o “dubbing” que dariam respectivamante no “MC” (mestre de cerimónias, o gajo do microfone que rapa) e o “DJ” (Disc Jockey, o tipo dos pratos). Falta grave porque o DJ Kool Herc (um dos pais do Hip Hop) era jamaicano que conhecia bem os “dancehalls” e as técnicas dos DJs dessa ilha – já agora, sobre este tema consultem a BD “Reggae on the river” de David Collier na Zero Zero #10 (Fantagraphics; 1996). Também ignora totalmente os Watts Prophets, Last Poets e Gil Scott-Heron, cheios de poesia furiosa da rua nos seus discos de 1970 e 1971!

Se calhar foi porque em 1981, Malcom McLaren (o mesmo que “inventou” o punk e que não quis ficar fora de moda) organizou uma festa onde reuniu os quatro elementos pelos quais se costuma afirmar o que é o Hip Hop: o MC, o DJ, o Breakdance e o Grafitti. Criou um paradigma e um discurso formal onde os mais fanáticos não deixam que caibam outras formas, tão errado tal como achar que BD só pode ser tinta sobre papel. Se Piskor engoliu isso, sendo rigoroso, a parte do graffiti é bem representada com episódios de Keith Haring, Fab 5 Freddy, Lee Quinones, Futura 2000 e Jean-Michel Basquiat mas já o Breakdance é desleixado. Então, Piskor?

Quanto ao estilo de desenho de Piskor, admito que é irritante as suas figurações com poses agressivas, o pessoal mais gordinho é completamente deformado em “blobs”, os “dentes de tubarão” das personagens, os punhos sempre cerrados pra uma luta (?), os olhos de raiva mortal ou de carneiro mal morto. Podia ser um estilo que fizesse ligação entre o super-herói à Marvel com o Hip Hop mas estes mesmos defeitos já os tinha apanhado noutros livros seus como Macedonia (com Harvey Pekar e Heather Roberson, pela Villard; 2007) e Wizzywig (Top Shelf; 2012). Cuspo no prato onde comi?

Hip Hop

Sim infelizmente, afinal estes volumes deram-me um grande gozo de ler!!! Este ano vão aparecer mais dois volumes que vão até 1985, da minha parte já está na lista de encomendas! Biatche

Invisible ink : My mother’s secret love affair with a famous cartoonist

Argumento e desenho de Bill Griffith. Fantagraphics, 2015.

Invisible Ink

Foi inesperado Bill Griffith (1944) lançar-se num romance gráfico autobiográfico. De repente, parece que este veterano quer-se actualizar com a malta nova, afinal, não há gato-sapato que não esteja a fazer romances gráficos do tipo autobiográfico / memórias ou reportagem / crónica de viagem, tudo com muitas páginas e aspecto de livro respeitável, né? O subtítulo não engana: “O secreto caso amoroso da minha mãe com um cartoonista famoso”!

Só que este senhor não vai de modas!

Se fosse o Zippy fazia-lhe a folha!

Griffith é um autor de BD que começou a carreira nos finais dos anos 60, naquela década em que se atirava molotovs à bófia, fazia-se sexo em grupo e havia drogas a pontapé. High Times! É um daqueles incontornáveis da revolução “comix underground”. Chegou a editar com Art Spiegelman a antologia Arcade, entre 1975 e 76, para verem o nível. A sua criação mais importante e que se tornou endérmica é Zippy – desde 1971 – inspirada pelos diálogos dos microcéfalos do filme Freaks (1932) de Tod Browning. Começou a aparecer como uma série de BD nos jornais em 1976 e entrou na distribuição “syndicate” para 200 periódicos a partir de 1986. Zippy não diz coisa com coisa tal como no nosso mundo pós-moderno, a abarrotar de plástico + verborreia + cancro + paus para “selfies” em que a única esperança é sonhar que o Justin Bieber e os seus fãs venham todos a fazer uma vasectomia irreversível, pleeeeeease… É uma série realmente “fun fun fun” e inteligente contra a máxima do Morris (do Lucky Luke) que dizia que o público adora personagens tótós porque se identificam ou se sentem superiores a elas — não me lembro bem se era este o sentido mas era algo do tipo. É de se notar que o autor a partir de 1979 co-habita nas tiras de Zippy através do seu avatar “Griffy” que tem um nariz quase à Pinóquio… e esse é o único elemento negativo de Invisible Ink: o autor retrata-se com essa grande penca caricatural e dissonante com o restante grafismo. Por isso, vou passar a escrever Griffy até porque é irritante escrever G r i f f i t h no teclado…

Invisible Ink

Este romance gráfico lembra-me imediatamente a falta de pudor e o exibicionismo norte-americano, que o autor João Chambel denunciou numa conversa que tivemos no programa Invisual a propósito dos documentários sobre Robert Crumb. Dizia ele que preferia o Confessions of Robert Crumb (1987) da BBC em relação a Crumb (1994) de Terry Zwigoff porque o último é muito gratuito ao expor toda aquela demência (com condescendência) não precisávamos de tantos planos do irmão Max (…) Zwigoff como era amigo teve acesso a quase toda a vida do Crumb (…) e depois exibe de forma deselegante. E realmente o que passa na cabeça de Griffy!? Expor a vida amorosa da mãe num livro de BD!? Only in America…

O tema intimista desta autobiografia colocou-me expectante dado à “autópsia da autobiografia na BD” e aos casos judiciais, sem consenso, do Direito à Imagem. Vale a pena ler os textos, em “francíu”, de Fabrice Neaud no L’Éprouvette 3 (L’Association; 2007) sobre o primeiro problema e Metakatz (5éme Couche; 2013) sobre o segundo. Aliás, foi isto que levou Neaud a abandonar a brilhante autobiografia do Journal (Ego Comme X; 1996-02) para a série sci-fi super-herói homoerótica Nu-Men (Soleil).

Antes de começar a ler Invisible Ink acho que qualquer um de nós, leitores, fica de pé atrás, com uma moral pronta para denunciar à Judiciária. Mas… de forma pragmática e fria, a mãe dele já faleceu, bem como todos os outros intervenientes, o pai / marido e o amante cartoonista, há algumas décadas. Até outros familiares para lá caminham. O próprio Griffy tem agora 72 anos e talvez sinta esta necessidade “genética-cultural” de deixar uma herança documental tanto sobre a sua família, de resto interessantíssima como o seu bisavô fotógrafo, como o registo das eternas paradoxais violentas relações de (qualquer) família do século XX.

É inteligente a forma como Griffy usa os documentos, físicos ou em linha, da família para construir esta história, sobretudo o romance cor-de-rosa que a sua mãe escreveu e que nunca publicou, para ilustrar as cenas que ele obviamente não presenciou entre o casal “pecador”. Invisible Ink é o drama de uma família nuclear “straight” típica dos anos 50 (que se pode relacionar com a série de TV Mad Men) em que por detrás daquela “pax americana” encontramos pessoas profundamente tristes e amarguradas que não se conseguem separar (pelo tabu da pressão social e económico) e acabam por arranjar affairs amorosos à procura de ___________________ (preencher, sff).

Invisible Ink

Paradoxalmente, para um romance biográfico sério ele é bastante “zippyzado” e é por isso que o incómodo moral de vasculhar o caixote do lixo da família no meio da praça pública acaba por se anular. Não sei se o autor teve consciência disso mas o que acontece é que Invisible Ink é atravessado por vários pontos temáticos que aparecem nas tiras de Zippy, saturando-o de informação com “factoids” ou observações pessoais sobre cultura e sociedade. Isso acaba por dar alguma camuflagem à exibição da vida privada mesmo quando ela é bastante explícita em várias páginas do livro — ex.: os amantes no seu leito amoroso.

Posso aqui escrever aleatoriamente apesar do ritmo muito estruturado do livro, que tanto nos sentimos obrigados a abrir a pestana para o facto que todas as nossas vidas passadas estarem à distância de um “clique” de um rato (e com uma pegada ecológica bem calcada) como (saltar três casas) inteiramo-nos da especulação que Griffy faz sobre a sua vida e a sua obra artística se tivesse sociabilizado mais com o amante da mãe, Lawrence Lariar (1908-91) ou até se este tivesse tornado no seu padrasto!

Lariar é daqueles ilustradores que fazia “livros de auto-ajuda” tipo Cartooning for everybody em que usava o “método do amendoim” (ou feijão, que prefiro) para qualquer desenho! Todas as formas, meu, podem ser gajas ou cães ou periquitos ou patrões da empresa, tanto faz, a base do desenho começa sempre com a forma de um feijão. Depois é só meter detalhes na feijoca! Scary!!! O trauma desta potencial formatação está descrita neste livro embora Griffy já tivesse mostrado isso em Are We having fun Yet? (E. P. Dutton; 1985) na BD “The Anatomy of Cuteness”.

O livro também é uma biografia de Lariar que fez BD e cartoon, escreveu policiais negros e editou os anuários Best Cartoons of the Year (1942-71). É uma curiosa figura que atravessa a História da cultura popular norte-americana do século passado, logo a fazer “comic-books” em 1935! Arrisco a afirmar que o seu trabalho assalariado e de encomendas não seja memorável e é provável que este livro o recupere ao olho público mais do que a obra que deixou. É o preço final do artista comercial que não costuma deixar saudades tornando-se em… tinta invisível?

Este livro e Paying for it (Drawn & Quarterly, 2011) de Chester Brown mostram como a autobiografia não morreu com Harvey Pekar.

Is That All There Is?

Is that all there is?

Argumento e desenho de Joost Swarte. Fantagraphics, 2012.

Tenho relido o Tintin nos últimos anos porque editei o Papá em África (MMMNNNRRRG; 2014) de Anton Kannemayer, porque tive acesso ao Tintin Akei Kongo (edição anónima) e porque estou a despachar a minha colecção para o “meu sobrinho” de nove anos que precisa de ler BD – claro que meti no ecoponto o “África” e o “América”, não ia dar ao miúdo aquele lixo mental! Relendo a obra toda percebe-se como a série vai evoluindo em todos os sentidos, incluindo o crescimento humanista de Hergé, de puto estúpido a um cidadão do mundo. Seja como for, até ao País do Ouro Negro as aventuras do “repórter de poupinha” são uma parvoíce pegada de situações “non-stop” de folhetim para crianças. Como o MacGyver, é só inventar tretas, pistolas que encravam e passam mil vezes de mão inimiga para mão traidora para um maneta, um copo-casca-de-banana para um gajo malhar e partir-se todo, mais uma perseguição de carros, motas e hidroaviões, etc, etc…

Is that all there is?

Is that all there is?

Quando se fala nos autores de BD de “linha clara” em que Hergé é a grande referência – termo este que o holandês Joost Swarte cunhou para o tipo de grafismo de BDs que utiliza linhas fortes que têm a mesma espessura e importância, em vez de ser usado para enfatizar determinados objetos ou ser utilizada para sombreamento – é realmente referido exclusivamente para a questão gráfica. Sei que que posso estar a ser redundante ao escrever isto, afinal “linha” diz que só se pode incluir desenho. Ainda assim, raramente se discute o tipo de narrativa ou de conteúdos temáticos que se vincula à “linha clara”. Não é uma surpresa de alguma forma porque geralmente o desenhador ultrapassa o argumentista quando se fala vulgarmente de BD – embora com a moda da “novela gráfica” se tenham invertido esses papéis.

Podemos juntar o holandês a um grupo de autores que renovaram a “linha clara” nos anos 70 e 80, como os franco-belgas Yves Chaland, Ted Benoit, Serge Clerc e Floc’h mas também Theo van den Boogaard (outro holandês), o espanhol Daniel Torres e até o “nosso” Luís Louro. Mas tal como o último escabroso álbum para comemorar os 30 anos da série Jim del Monaco, a maior parte destes artistas fazem a manutenção dos pecadilhos da BD com a sua insistência irritante no uso de elementos nostálgicos de outros tempos mais “dourados” – dos tempos das colónias e dos seus ignorantes “conguitos” com lábios de salsicha, das aventuras exóticas pelo mundo ainda por cartografar, da inocência e surpresa da descoberta de novas tecnologias sejam elas para conquistas espaciais como para aplicação quotidiana, o regabofe das corridas, velocidade e skyscrapers, etc… É muito estranho o conteúdo da “linha clara” que recorre sempre à nostalgia e à infância inocente das BDs dos outros tempos.

A “linha clara” parece ter um propósito programático, o “retro”. Ainda mais estranho isto se considerarmos a expansão e a euforia económica dos anos 80, pois como se sabe o “mercado da nostalgia” depende do mal-estar do presente. Estes autores queriam “ainda mais e melhor” do que a década de 80 lhes ofereceu? Swarte não sai muito desta linha de pensamento, mesmo que ele tenha feito parte dos Provos – movimento de contestação dos anos 60 – mas foi de certeza menos militante que o seu conterrâneo Willem – já agora, é de notar que ambos fazem a BD “Enslaved by the Needle!” (1973) com Willem como argumentista e que se encontra neste livro. Sei que Swarte fez algumas BDs políticas nos inícios dos anos 70, altura aliás, quando começa a sua carreira como autor, editor e divulgador de BD trabalhando com a Real Free Press, uma editora e loja de BD que sobrevivia graças ao narcotráfico… man, those were the days!

Nesta compilação, verdadeiro ”cartão de visita”, a sua obra parece-me pouco convincente no que quer transmitir do seu foro intimo ou de teor político, embora não seja nitidamente um nostálgico à procura da zona de conforto da infância feliz – ah, as tardes preguiçosas que que se lia as novas “aventuras do Zonzon & Rififi na Micronésia” – pois até introduz elementos de sexo e violência (vindos da estética underground dos anos 60/70) sobretudo em narrativas que decorrem no caos das grandes urbes. Talvez a sua maior crítica seja a alienação mental da sociedade mas a tónica sabe a pouco.

Lê-lo (hoje?) parece ser um acto pueril, tal como ir ressacado a um museu de arte contemporânea no Domingo de manhã, em que por mais esforço intelectual que seja feito, o produtor e o receptor não se entendem… mas sim, é muito giro ver a instalação no chão, ler a folha de sala pelo sim pelo não, não vá passar ao lado a intenção do artista. Depois da bica, uma olhadela na livraria do museu, metemo-nos no carro e esquecemos o que vimos… É óbvio que Swarte destaca-se pela espetacularidade do grafismo e “design”, tanto que ele tem feito desde selos a edifícios na sua carreira profissional e artística, trazendo à baila a máxima “the medium is the message”. Olhar para um desenho seu é descascar detalhes cómicos ou irónicos como a capa do segundo número da revista Raw (1980) também aqui republicada. É uma delícia observar vinhetas ou imagens cheias de detalhes e construções extravagantes mas sobretudo a orgia de “slapstick” e “screwball” com saltos à globetrotter. E depois disso o que acontece? Is that all there is? é um título infelizmente mais irónico do que gostaria de ser.

Para quem não pratica a francofonia, o antigo “número 2” da Fantagraphics, Kim Thompson (1956-2013), deu à estampa em língua franca para a Aldeia Global uma boa selecção de BDs e algumas ilustrações produzidas entre 1972 e 2010 para várias revistas e livros. Um gesto editorial de salutar embora o livro poderia ser melhor: podia ter uma capa dura para não termos um “peixe morto” na mão, podia ter um formato maior para não ter algumas BDs deitadas, ter a ordem dos trabalhos alinhada cronologicamente para se perceber a evolução do autor, ter mais textos de apoio – o do Chris Ware é bom mas não chega – para quem não vá conseguir distinguir um trabalho pessoal de uma encomenda institucional como “The Rubber Paradise” que saiu no álbum Les aventures du latex: La bande dessinée européenne s’empare du préservatif (1991), curiosamente a BD mais genuinamente divertida desta compilação da “Fanta”.

Por fim, lembro que este autor em Portugal só existe como ilustrador do provocador e belíssimo livro O papalagui : discursos de Tuiavii, chefe de tribo de Tiavéa nos mares do Sul (Antígona, 1988). O que é estranho, um livro que já teve várias reedições ao longo de três décadas nunca se publicou um livro a solo de Swarte. Será porque Swarte fez BD a pedir o boicote ao café angolano (como forma de pressionar o fim das guerra nas colónias) em 1973, que ninguém o liga? Os portugueses toscos não o perdoaram? Claro que não é isso! É só ignorância visual que este país sofre, pá, afinal as primeiras edições nacionais do Papalagui nem as ilustrações tinha… Talvez para poupar uns trocos e para além disso, os nossos editores literários sempre tiveram a infeliz postura do “ter bonecada para quê?”

Umbrella Academy

Argumento de Gerard Way, desenho de Gabriel Bá.

Umbrella Academy

Umbrella Academy

Umbrella Academy

Disclaimer

A sério que queria perceber porque se fala tanto deste livro… E tentei, depois de duas décadas sem mexer no fosso imundo dos super-heróis e afins, lá comprei a edição portuguesa (Este texto refere-se à edição portuguesa embora as fotografias sejam da edição americana da Dark Horse que comercializamos)) da primeira compilação de Umbrella Academy, que junta a equipa criativa (pfffff) Gerard Way, o vocalista dos xoninhas My Chemical Romance (MCR), com o desenhador brasileiro Gabriel Bá – que já esteve presente na galeria da Mundo Fantasma.

Ao pegar no presente volume, mais do que um entretenimento puro e duro, o que vejo é um manual de cultura corporativista em que Grant Morrison, que abraçou a causa da trash culture, defende esta treta usando até o termo “ética do trabalho” para justificar a qualidade da BD. Isto num dos dois prefácios do livro, o primeiro é do desenhador Bá e serve para comemorar a edição portuguesa mas sem que ele tenha muito para dizer onde pouco há para contar, diga-se. O que Morrison alude é complementado com o posfácio Scott Allie (o editor original, dos EUA, da Dark horse) que também diz maravilhas como Way deu ao litro, entre turnês e outros compromissos com a sua banda – uma banda que teve sucesso à escala global – para escrever esta BD.

Admito que ver os vídeos e ouvir a música dos MCR dá-me asco, também eles corporativistas assumidos com fardetas Dark do Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band – mas que parecem antes fardas de super-heróis à lá X-Men dos filmes. A música é um insuportável Pop/Rock FM melódico que tanto podia confundir-se com o Punk/Pop dos Green Day como o Rock Teeny dos Tokyo Hotel. Péssimas referências estas duas. Os MCR ficam no meio delas. Visualmente Way é uma criatura horrorosa que faz caretas entre o mauzão demente (como mil bandas esquecidas do Nu Metal) e o tosco sedutor hermafrodita de um Glam Rock tardio. É música adocicada para jovens, subiu nos Tops de vendas sabe-se lá porquê. Quer dizer, a “ética do trabalho” significa muito para um país como os EUA. Passar de um media para outro também é bastante normal por aquele continente, basta ser famoso e rapidamente um “Rock star” vende pinturas, escreve livros, realiza filmes ou escreve para BD. Em 2007, o vocalista dos MCR meteu-se na BD, podia até correr bem e os (meus) preconceitos não serem fundamentados. E engoli-os para comprar este livro… mas não, isto não tem interesse nenhum e só assim se explica tantos prefácios e posfácios, para justificar o inevitável: it sucks!

Spoiler

O problema de Umbrella Academy (porque não traduzir “Academia Umbrella” já que “Academia Guarda-chuva” soa foleiro em ‘tuga?) não é um caso isolado. A produção norte-americana que se mantem com o conceito juvenil de fazer “comic-books” (a quem lhe chame de “floppies” agora) mensais parece ser um paradoxo gigantesco difícil de resolver. Só existe esta indústria de produção por causa das estruturas montadas vindas dos confins do século passado e porque os “comic-books” servem de motor para “trademarks” em que o verdadeiro “big money” é feito a posteriori quando uma série faz sucesso, é compilada em livro, transformada em “merchandising” e adaptada para cinema/televisão. No entanto, como formato para desenvolver narrativas interessantes mostra-se cada vez mais limitado e frustrante, a não ser que se seja um génio como o Alan Moore.

O mais estranho é saber que se fazem “deadlines” apertados para lançar estes fascículos mesmo quando é assumido que se trata de uma “mini-série”, ou seja, parece-me absurdo fazer “deadlines” muito próximos do real lançamento prás ruas quando não se trata de se alimentar uma série “eterna” como o Homem-Aranha que desde os anos 60 sai mensalmente, à qual não se pode falhar neste esforço contínuo. Os gringos assumem que trabalham num formato que não é só limitado fisicamente (cerca de 22 páginas a cores) como também o é temporalmente porque produzem num esquema de entregas mensal em cima do lançamento oficial invés de terem tudo pronto para depois publicarem mais tarde e sem “stresses”. Não me parece que os autores (se quisessem) possam sair desta caixa, ou sequer, lixar a caixa por dentro. Um sistema destes fazem do adágio “e a montanha pariu um rato” verdade, daí que acho esta série previsível de fasciculo em fascículo.

O que se vai ler (ou o que vai acontecer) é nos dado de forma tão óbvia que está-se mesmo a ver que a gaja da equipa destes super-heróis que teoricamente não tem superpoderes AFINAL é a que tem mais “powers”!!! E que o resto da equipa vai ter que lidar com ela quando esta se passar para o “outro lado” – aló Dark Phoenix Saga?

Teaser

Diz a sinopse que durante um acontecimento inexplicável, quarenta e três crianças foram geradas espontaneamente por mulheres que não apresentavam sinais de gravidez. Sete dessas crianças foram adoptadas por Sir Reginald Hargreeves e formaram a Umbrella Academy, uma família disfuncional de super-heróis com poderes bizarros. Na sua primeira aventura, essas crianças enfrentam uma Torre Eiffel enlouquecida. Quase uma década depois, a equipa separa-se, mas estes irmãos, desiludidos, reúnem-se a tempo de salvar o mundo outra vez. (…) Logo aqui soa a “homenagem” (uma forma cordial e industrial para dizer “rapinanço”) à Doom Patrol e aos X-Men, equipas de super-heróis bizarros e órfãos da Humanidade que um professor / doutor os reunirá sob a alçada da sua escola e protecção, para os colocar ao serviço do bem.

O universo que nos é dado a explorar trabalha com alguns flashbacks, em poucas coisas são explicadas para causar curiosidade aos leitores e futuros fãs mas não há nada aqui que crie mistério maior para empolgar seja quem for, a não ser que seja um leitor virgem ao género super-heróis. A excepção são as duas BDs fora da colecção que também se encontram neste livro que coleciona os seis primeiros números da série, esboços (so boring!!!) e essas duas BDs que eram “teasers” de promoção, lançadas antes da série sair oficialmente. São estas duas pequenas peças, “Mon dieu!” (de 2 páginas) e “…Mas o passado não perdoa.” (12p.) que mostram algum génio (foi sem querer?), piada e força do argumentista. A última, lançada como um Free Comic Book Day vemos um dos super-heróis desta família disfuncional que tem uns tentáculos, uma personagem extravagante visualmente e que não apareceu na história principal (another spoiler, sorry!) mas nem é por ele que tem piada, é justamente a esquizofrenia da acção toda que se passa nestes episódios, em que não há pontos de referência mas tudo avança para um absurdo de acção bastante divertida. Estes episódios mostram os dotes de Way como um bom manipulador da sua própria criação mitológica. Há que referir, já que tudo é explicado no livro, que estes “teasers” foram realmente feitos antes da série principal ter sido escrita. Ou seja, Way teve aquilo que se chama “sorte de principiante” e que depois foi-se esvaecendo…

Brouhaha

Os desenhos de Bá, feitos com profundos contrastes, lembram o estilo do Mike Mignola mas com mais expressividade que o criador de Hellboy. Suponho que o profissionalismo e “ética de trabalho” safe isto tudo embora acredite que se houvesse menos prazos para os autores, melhor seria o trabalho gráfico de Bá.

Por fim, lembro que nos finais dos anos 80 apareceu uma banda inglesa chamada Pop Will Eat Itself que é capaz de ser o melhor “nome-manifesto” para a música urbana pela forma autofágica como vemos as fórmulas repetirem-se até à exaustão, com uma indústria fonográfica a gastar mais dinheiro em promover lixo do que a incentivar à criação – aliás, como seria possível de outra forma? A “Academia do Guarda-Chuva” tem esse trago a derrota velha e acredito que a Devir tenha decidido publicar esta série para capitalizar o nome de um vocalista de uma “grande” (em dimensão) banda Pop/Rock naquela de trazer público generalista prá BD – e pode ser que daqui essas pessoas saltem para outros livros mais interessantes! É um bom golpe de publicidade, portanto, parabéns!